Gabriel Rocha 09/01/2024
Devemos desconfiar dos que nos faz felizes
Não se engane com as catalogações literárias, Gabriel García Márquez é um escritor versátil.
Seu atrevimento não se esgota no realismo fantástico, nem em se atravessar por outros gêneros, como nessa sua única peça de teatro, um monólogo. Mas no jeito de contar, que lhe é tão característico, mas sabe soar diferente, quando convém.
Diatribe de amor contra um homem sentado tem uma narrativa bem deduzível já nas primeiras páginas. É uma história encerrada em si mesmo, tão antiga quanto andar pra frente. A imbatível guerra dos sexos onde uma heroína - aqui, Graciela, a nossa heroína - se levanta contra as clausuras do patriarcado. Em vão, infelizmente. Obviamente. Mas seu discurso é sua resposta e também toda a peça. Natural pra um monólogo, claro, mas o bonito aqui são as nuances viscerais que o texto carrega. Graciela tem como vantagem ser uma mulher estudada nas letras (com 4 doutorados e 2 mestrados), o que lhe dá o direito de carregar o livro de simbolismo, e, além disso, apresenta toda sua história só no jeito de contar, mais do que no que conta em si.
E aí que está a destreza inédita do Gabo, a capacidade em transformar um texto em 1° pessoa num discurso polifônico, cheio de atravessamentos das 'outras' vozes que tomam parte na trajetória desse casamento falido. A qualidade é tanta que nos faz sentir quase exatamente o tom que a atriz precisaria dar à vibração de sua personagem em cada momento, pois está tudo esmiuçado no ritmo do texto.
Outro detalhe impressionante é a variedade com que o Gabo descreve a atmosfera e a composição do cenário. Não na descrição em si, mas quando acrescenta liricidade ao quadro, numa ou duas frases, contentando, certamente, o diretor, com uma elucidação sensitiva muito mais rica do que a objetividade poderia oferecer. E nesse caso, parece até mais apropriado ler a peça do que assisti-la; é como saborear um fruto proibido, às escondidas, vendo um filmes pelos bastidores e contemplando muito mais do que as imagens poderiam mostrar, o que transforma essa peça teatral em um belíssimo livro.