Sergio 11/09/2014Uma guerra de sentimentosHavaa, uma criança de oito anos, esconde-se na floresta após ter seu pai levado por soldados e sua casa inteiramente incendiada. Akhmed, seu vizinho, a encontra em meio as árvores e decide que precisa cuidar da garota, já que o pai dela, Dokka, fora desde sempre um excelente amigo para com ele. Percebendo que não há como manter a garota à salvo dentro da vila em que vivem onde informantes delatam qualquer um por qualquer trocado Akhmed resolve tentar a sorte e leva a garota até o hospital da cidade mais próxima, único local onde acredita que ela pode estar a salvo.
O hospital, que um dia já contou com mais de quinhentos funcionários, hoje funciona apenas com uma única médica, Sonja. Estando no nível mais baixo não apenas de sua carreira profissional, mas também de sua vida emocional, a rotina da médica basicamente se resume a amputar membros dilacerados por estilhaços de bombas e minas terrestres. Akhmed, que nunca havia tido nenhum tipo de contato com Sonja durante toda a sua vida, tenta convencê-la de que é necessário abrigar Havaa nas dependências do hospital; caso contrário, a menina acabará tendo apenas um rumo: a morte nas mãos dos militares.
Akhmed, um médico incompetente mas com um excelente coração, formou-se entre os últimos alunos de sua classe por faltar as aulas de laboratório para assistir aulas de artes, o que lhe rendeu excelentes dotes artísticos, mas acarretou em sua inabilidade e incompetência para as ciências biológicas. Conseguindo convencer Sonja a abrigar a menina, Akhmed vira também auxiliar dela, trabalhando no hospital em todas as áreas necessárias. As perdas materiais e psicológicas dos dois fará com que eles se apeguem de uma forma singular à menina; apego esse que durante o enredo se solidifica cada vez mais, transformando o relacionamento do trio em algo poderoso.
Sendo o romance de estréia de Anthony Marra, "Uma Constelação de Fenômenos Vitais" é muito mais que "apenas um livro". Abordando temas sérios como a guerra não apenas a da Chechênia, que é o foco da narrativa, mas também a primeira e segunda guerra mundial , o autor traz uma seriedade enorme ao enredo. Porém, Anthony consegue nos passar todo o conteúdo de uma forma leve e descontraída, sempre se utilizando de diálogos com uma pitada de humor.
Os personagens são muito bem descritos e trabalhados. Com o decorrer da história, conseguimos perceber uma evolução significativa em cada um deles e na relação que possuem uns com os outros de indiferença à imprescindibilidade. Outra coisa que acabamos descobrindo durante a leitura é que todos os personagens estão ligados, de uma forma ou de outra, formando assim uma teia robusta e complexa.
A guerra, é claro, acarreta diversos transtornos, entre eles a separação de familiares. Ponto bastante explorado no enredo é a necessidade que possuímos em termos tudo que consideramos "nosso" ao alcance. A obra aborda de forma consistente a defesa da amizade, embora nos mostre que sempre há falsos amigos, e que devemos ter muito cuidado com eles. A trama se passa entre diversas idas e vindas em uma linha de tempo com cerca de dez anos, indo de 1994 até 2004. Nela, viajamos do presente ao passado, para assim podermos compreender melhor todos os fatos expostos na obra.
Entre as diversas cenas aterrorizantes de dilacerações e desmembramentos, encontra-se também passagens singelas e tocantes. Bato na mesma tecla novamente: alguns dirão que esse livro é "mais um livro histórico clichê que aborda guerras, cenas fortes e mortes intercaladas com situações melosas", mas essa frase está longe de representar o que realmente a obra oferece.
Cabe a vocês decidirem e tomarem suas próprias conclusões, mas já deixo dito que Uma Constelação de Fenômenos Vitais é, até o presente momento, o melhor livro lido por mim no ano. Simples, mas bem escrito; tocante, mas sem ser piegas; forte, mas sem ser grotesco. Uma história de superação, amor e confiança narrada de forma elegante e reflexiva.
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