O intocável

O intocável John Banville




Resenhas - O Intocável


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Ladyce 03/02/2013

Retrato do homem, do espião e de uma era
Há muito eu tinha curiosidade sobre o duplo espião britânico, Anthony Blunt. Conheci-o como historiador da arte especializado na pintura européia do século XVIII; diretor de um dos mais sérios centros de pesquisa da arte, Courtauld Institute of Art. Mas antes mesmo de eu me formar em história da arte, o escândalo no qual ele foi figura central -- agente duplo do serviço secreto britânico MI5 para a Inglaterra e agente para a União Soviética dos anos 30 ao início dos anos 50, membro do chamado Cinco de Cambridge [Cambridge Five] ainda era debatido e questionado. Nada poderia ter surpreendido mais o mundo dos museus e da pesquisa acadêmica do que a descoberta de que o pacato mundo das bibliotecas e dos porões de museus poderiam ter servido de disfarce para tal profissão. A partir de 1979 Anthony Blunt passou a ter uma nuvem de mistério a sua volta. Como? Porque? Não que a vida particular de qualquer historiador de arte seja de interesse público mas espionagem era algo completamente fora da norma. E vez por outra, na atividade comum de perda de tempo à volta de uma mesa de bar, nós, estudantes de pós-graduação tentávamos imaginar como uma pessoa de tamanho porte acadêmico, tão chegada à Rainha da Inglaterra, poderia ter se imiscuído na espionagem e contra-espionagem?

John Banville responde a todas essas questões e a muitas outras nesse romance biográfico baseado na vida de Anthony Blunt, retratado sob o pseudônimo de Victor Maskell. Fazem parte do enredo também Guy Burgess e Donald Maclean, (todos com pseudônimos) do grupo 'Espiões de Cambridge'. Banville preenche lacunas e satisfaz nossas dúvidas. Este é o estudo profundo de uma personalidade. Talvez um dos personagens mais tridimensionais da literatura atual. É vívido. Parece real. A história é sedutora e Banville nunca deixa de entreter e acima de tudo de mostrar a pessoa complexa e coerente do homem e do espião, dentro dos parâmetros sociais e de época.

Mas, parafraseando Tom Jobim, “A Inglaterra não é para principiantes”. Para uma compreensão mais apurada do texto, um bom conhecimento das nuances da sociedade inglesa certamente ajudará na leitura; uma boa dose da história do enlace das classes altas inglesas com a política nazista, também. Por fim, um conhecimento superficial, mas coerente do estoicismo e da posição ética de Sêneca podem ajudar a entender a percepção que Banville tem de Blunt. Será interessante lembrar também os preconceitos da sociedade, numa época anterior à Segunda Guerra Mundial – homossexualismo, conflito de classes, a questão irlandesa -- tudo isso adicionará uma pitada de interesse. E o mundo da década de 30 estava enamorado do socialismo, ato que justificou ditaduras de direita e de esquerda do período: Itália (Mussolini), Espanha (Franco),Portugal ( Salazar), Nicarágua (Somoza), Brasil (Vargas), Grécia (Metaxas), Cuba (Batista), Rússia (Stalin), sem mencionar a Alemanha de Hitler. Fica evidente através do texto que Anthony Blunt não se sentia parte nem da sociedade inglesa, nem de nenhuma outra. Era um verdadeiro estranho no ninho: irlandês, pobre mas com nome de família – primo distante da rainha -- homossexual, com acesso ilimitado à corte – não é de surpreender, portanto, seu solipsismo, sua visão única do mundo como uma projeção de suas próprias fantasias. A tendência seria desgostar dessa personalidade dúbia, inconseqüente, com uma atitude tão blasé em relação à vida, como Anthony Blunt é retratado. Mas, pelo contrário, talvez porque a narrativa seja na primeira pessoa, talvez porque estamos rodeados dos detalhes que fazem o personagem crível, ficamos com a justa dimensão de um homem de grande conhecimento. John Banville não o retrata menor do que era.

No entanto, há sempre, e aí está parte do charme deste romance de suspense, a dúvida: será que Victor Maskell está nos dizendo tudo o que sabe? Há algum motivo para acreditarmos na realidade que ele nos descreve? Espião, agente duplamente inconfiável, Victor Maskell [será que o nome vem de Mask, máscara?] é o anti-herói por excelência, figura trágica, cuja vida é passada em pequenos compartimentos e se equilibra, desde os primeiros dias da juventude entre mostrar e viver o que não é: da vida de espionagem à vida sexual.

Como um mestre John Banville também brinca com o leitor ao desenvolver como tema o amor que Maskell tem por um quadro de Poussin: A Morte de Sêneca [fictício]. E dúvidas quanto à sua autenticação só intensificam o eco das perguntas que fazemos sobre a narrativa, é verdadeira ou falsa? O pintor francês do século XVII Nicolas Poussin foi de fato objeto de estudo de Anthony Blunt como historiador da arte. Mas, a presença de um quadro inexistente, cuja autenticação depende de Maskell é um paralelo magistral ao jogo de espelhos que a vida do espião reflete. Victor Maskell assim como Anthony Blunt, têm o fim que merecem: são traídos. Um pouco de justiça poética arrematando uma vida de fantasias.
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