Kauane 18/03/2021foda-se o patriarcado"as vezes é bom ter lembrança porque elas são a história da nossa vida e sem elas não ia ter nada. mas tem vezes que a memória guarda coisas que a gente nao quer nunca mais ouvir falar e não importa quanto a gente tenta tirar elas da cabeça. elas voltam."
Estou sem palavras para descrever esse livro. Começa de forma despretensiosa, com certa pureza e inocência ao descrever cenas cotidianas. E se torna um livro sensível, forte e extremamente sufocante.
Nunca gostei de livros escritos em linguagem informal. Em "a cor do leite", a narração é toda em letra minúscula, com erros de concordância e ausência de vírgulas. E eu achei brilhante o que a autora fez e como ela encarnou uma menina de vida simples e muito sofrida em 1831, dominada e destruída pelo patriarcado e pela hipocrisia.
Muitas cenas são de cortar o coração. E tudo sem rodeios, em uma linguagem curta e direta. As características da Mary - durona, realista, honesta e corajosa - nos faz perceber a sua dor sem que ela diga uma palavra sobre o seu sofrimento. Tudo mexe conosco. A forma como ela aceita o seu destino de cabeça erguida. Como ela tem ciência de que as coisas não estão corretas, mas ao mesmo tempo inocência para aceitar essas condições por
não conhecer outra vida e de que outra forma as coisas poderiam ser.
"não tem nada que me aborrece. se eu não posso fazer nada pra mudar uma coisa então eu não deixo ela me chatear. se eu posso mudar uma coisa então eu faço e aí não preciso me chatear com nada também."
A Mary é dominada pelos homens da história e, como ela mesma faz questão de os lembrar a todo momento, não tem nenhuma opção de escolha sobre sua própria vida e futuro.
Outros livros semelhantes que já li têm como personagem principal mulheres negras ("O olho mais azul" e "Eu sei porque o pássaro canta na gaiola"). Achei uma ótima escolha da autora criar uma personagem branca, com os cabelos da cor do leite, e colocar no papel de uma escrava. Uma escravidão física e moral que me doeu na alma. Que muitas mulheres, pretas ou brancas, sofreram por serem mulheres.
A construção das personagens e do cenário foi primoroso. Os diálogos com o querido avô são inteligentes e sensíveis. Eu não sei como a autora conseguiu dizer tanto com tão pouco! Como uma história tão complexa pareceu tão fácil de ler. Esse livro realmente me impressionou e vale infinitamente mais do que eu achava que valia quando comecei a leitura. Apesar do aperto no peito, também tem sua beleza. Apesar da tristeza pelo fim, leria de novo só para estar com a Mary mais uma vez.