Peregrina 02/02/2015
O fim do século mais agitado da humanidade
Encontrei o primeiro volume da trilogia "O Século" em meados de 2013 e não foram necessárias muitas páginas para que me apaixonasse perdidamente por ele. O primeiro livro que li do autor consagrado internacionalmente por livros como "Os Pilares da Terra" (que mais tarde viria a ler) e "Mundo sem fim" foi igualmente fantástico, um grande sucesso.
Para mim, a leitura foi encarada a princípio um desafio. Como disse na minha resenha de Queda de Gigantes, nunca havia lido nada do tipo e nada tão... grande. Mais de 900 páginas e, à medida que avançava na leitura, encontrava-me cada vez mais imersa num mundo que fora muito mais real do que gostaria de acreditar. Alegrei-me, sofri, e vivi com os personagens durante o caos da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa. O mesmo aconteceu em Inverno do Mundo com a ascensão dos regimes totalitários na Europa e a barbárie que foi a Segunda Guerra Mundial.
E eis que é lançado o último volume da trilogia que narra, sob o ponto de vista de várias pessoas de diferentes nacionalidades e classes sociais, os principais acontecimentos do século XX. Eternidade por um fio foi talvez o livro mais aguardado do ano de 2014 para mim (ainda que só pudesse ter a oportunidade de lê-lo agora, em Janeiro) e, infelizmente, não atendeu às minhas expectativas.
Eu sabia que mil páginas talvez fossem poucas para trinta anos de história, mas eu confiava que se alguém pudesse escrever sobre a Guerra Fria assim, este alguém seria Ken Follett. Porque depois de ler Queda de Gigantes, Inverno do Mundo e Os Pilares da Terra... como duvidar de sua escrita brilhante?
Ao contrário dos outros dois livros, e ao contrário dos 50 anos anteriores, a Europa ocidental perde um pouco da atenção especial dedicada a ela no início do século. Isso porque após a Segunda Guerra, a ordem mundial se torna bipolar: os Estados Unidos e a União Soviética emergem como as duas potências vencedoras do conflito e querem divulgar (ou impor) o seu modo de viver socialmente, economicamente e politicamente às outras nações. Portanto, como já era de se esperar, a maioria dos eventos do livro ocorre nos dois países que dividiram o planeta por mais de 40 anos.
Grande parte da história é ambientada na década de 1960 (acredito que cerca de 60% do livro), quando ocorreram a Crise dos Mísseis, os assassinatos dos irmãos Kennedy, o início da luta pelos direitos civis nos EUA, assassinato de Martin Luther King, início da "era" hippie, etc. Mesmo com tanta coisa para ser discutida, um significativo número de páginas foi utilizado desnecessariamente para descrever aventuras amorosas dos personagens e o pior de tudo é que poderiam ter sido poupadas. Entendi que Ken Follett queria mostrar a liberdade sexual, a questão dos divórcios, relacionamentos casuais e tal, porém ele repetia tanto isso e misturava tanto os relacionamentos entre personagens que em certo ponto se tornou maçante e empobreceu muito o livro.
A Guerra do Vietnã foi outro ponto que podia ter sido infinitamente melhor trabalhado, mais aproveitado, quero dizer. Jasper - filho de Eva Murray, amiga judia de Daisy no segundo livro - foi para a Guerra, ficou lá por dois anos, mas só temos UMA cena de ação no Vietnã e, se houve mais, não foram muitas. Eu já tinha aceitado que ele nem falaria da Guerra da Coréia porque ela se passou num período de tempo bem antes ao início do livro, mas não foi dada a devida importância à Guerra do Vietnã e, na minha opinião, isso não deveria ter acontecido. Porque, bem, essa é a Guerra Fria! A Guerra Fria foi marcada por conflitos como a Guerra do Vietnã, conflitos indiretos entre as potências dominantes. A parte que Jasper está no Vietnã foi tão curta, tão óbvia que foi quase ridícula. A informação das atitudes nojentas dos soldados americanos foi bem-vinda e interessante, mas todo o conjunto de partes que narram a guerra foi pobre também. Esperava muito mais de quem narrou com tanta emoção e vivacidade o ataque à Pearl Harbor em Inverno do Mundo.
Sobre a questão cultural - o ponto mais trabalhado pelo autor -, Follett fez questão de exaltar a ruptura com as tradições do passado com a rebeldia dos filhos com os pais, muito sexo, muita droga e muita música (Rock'n'Roll!). Só com esse clichê já descreveria quase a totalidade do livro.
Gostaria de comentar sobre alguns personagens, entre eles Walli, alemão filho da Carla, que deu a sorte de fugir da Alemanha Oriental duas vezes (algo que não me convenceu, sinceramente. Era difícil atravessar uma vez, agora, duas?) detestava o "pai", queria viver da música e aderiu ao movimento hippie depois de uma decepção amorosa. Esperava um desenvolvimento melhor, um engajamento maior na política, mesmo que não fosse lá tão ativo. Ele viveu numa família com todo um histórico político e isso não teve o efeito que eu esperava sobre ele. Ele foi uma decepção para mim por conta disso. De qualquer forma, sua irmã Rebecca e até mesmo Lili acabaram atendendo às expectativas que eu tinha em relação a Walli e deram para o gasto.
Apesar de tudo, Walli foi utilizado para mostrar como o que aconteceu com os jovens que se tornaram dependentes de drogas nas décadas de 1960 e 1970: acabaram em um péssimo estado. Só que Walli conseguiu se recuperar milagrosamente após um ano e deu tudo certo: não pegou nenhuma doença sexualmente transmissível nem qualquer outra depois de anos injetando droga diretamente na veia com seringa de qualquer um e praticando o "amor livre". Prefiro nem comentar sobre a verossimilhança desse caso. Nós também vivenciamos o seu drama de ter a família dividida pelo muro, passar mais de duas décadas sem ver a própria filha e isso valeu o personagem.
Gostei do filho do casal interracial Greg e Jacky do segundo livro: George Jakes. Sem dúvida, a intenção era que ele fosse o que a Ethel e o Lloyd foram nos primeiros volumes. Aquele personagem que todo mundo torce para que dê tudo certo com ele. Só que foi bem mais fraco, fui simpática à sua luta pelos direitos civis e gostava realmente dele, mas sua vida amorosa ficou entediante em certo ponto e estragou um pouco a sua trajetória na história, no quesito Corno Manso só não perdeu para o russo Dimka (sobrinho de Volodya, neto de Grigori), que foi um saco. Os olhos do Kremlin se dedicavam mais aos seios da Natalya do que à ação em si e isso cansou MUITO. Talvez pareça um exagero, mas antes de mais nada queria dizer que sim, Follett obviamente tratou de política sim, só não tanto quanto do lado cultural e grande parte do tempo dedicado à política era para bajular os irmãos Kennedy.
Ainda com Dimka e George, como disse antes, entendi que Ken Follett quis demonstrar a liberdade sexual e o advento dos casais divorciados, dos segundos casamentos, mas as trocas de casais foram irritantes demais. Um momento George estava apaixonado por Maria, mas namorava fulana cujo nome não me lembro, só que queria dormir com Verena, depois terminou com a fulana pra sair com a Maria que começou a ter um caso com outro, então saiu com ciclana, o que não deu em nada e mais páginas foram gastas à toa.
Outra crítica vai para o fato de que praticamente TODOS os personagens ficaram famosos de certa forma. Walli e Dave fizeram sucesso na indústria musical internacional, Evie, a irmã do Dave - filhos de Lloyd - vira uma atriz global, Jasper se torna um jornalista global, Rebecca faz parte do parlamento e mais tarde ocupa um importante cargo no ministério das relações exteriores... então foi um pouco inverossímil, até mesmo para um livro de ficção. Ken Follett usou e abusou da licença poética.
Gostei muito da Tanya, irmã gêmea do Dimka, sua personalidade determinada, corajosa e sua amizade com Vasili também. Guardei uma decepção pequena porque queria ter tido pelo menos um breve relato de que o escritor - que também ficou famoso, para variar - assumira suas obras e recebera toda a fortuna que acumulara por anos com seus livros e, aproveitando a brecha, queria criticar o fato de que vários personagens foram ignorados. Tanto dos livros anteriores como Billy Williams e Erik von Ulrich), quanto desse próprio, quando o final se aproximou. Além dos personagens, Follett pareceu ter se esquecido que o socialismo não acabou com a queda do muro...
O que mais? Poderia aproveitar para dizer que Ken Follett exprimiu em cada linha sua opinião política e fez de tudo para demonizar qualquer viés contrário aos ideais que defende, mas então ficaria muito tempo discutindo sobre isso. Para resumir, eu sei que o livro é dele e ele faz o que quiser, principalmente porque tudo sobre essa trilogia envolve política, mas eu não achei lá muito legal do tom muito - além de - parcial que ele usou, o jeito como "só o partido que eu defendo que é o certo" que ele escreveu sua história. Ele poderia deixar impressa sua opinião, porém de modo mais leve porque ele nem se preocupou em disfarçar que mesmo que os democratas queridinhos da década de 1960, os irmãos Kennedy, fossem canalhas em alguns aspectos ou simplesmente imbecis eram os melhores políticos da história dos Estados Unidos ao passo que qualquer coisa que os republicanos - ou outros democratas de quem ele não gosta - fizessem era um enorme pecado e pareciam ser monstros de 7 cabeças. Sem mencionar que os comunistas pareciam uns grandes bobos, mas ok.
Enfim, esperava muito mais história, muito mais conflitos, mais acontecimentos importantes da época que mal foram mencionados e esperava personagens melhor desenvolvidos, com histórias mais críveis e de quem eu gostasse tanto quanto gostei da Maud, do Walter, do Lloyd, do Volodya...
Mais uma vez, eu sabia que era necessária uma abordagem cultural impecável da época porque foi um período de grande efervescência e ruptura com antigas ideias conservadoras, só que por dar muita importância à questão cultural, Follett acabou negligenciando outros aspectos da história.
A história não é ruim, muito pelo contrário, Ken Follett narra a luta dos negros pela igualdade com maestria, descreve a tensão da Crise dos Mísseis com tanta propriedade que nós sentimos na pele o medo que aquelas pessoas sentiram e relatou com tanto esmero o drama da construção e queda do muro de Berlim que foi impossível não se emocionar. O problema é só que eu esperava TANTO desse livro, pensava que seria espetacular e não foi, não o tempo inteiro. O início foi muito bom e o fim também, porém o autor pecou em vários elementos no meio da história, foi terrível e esmagou de vez minhas expectativas.
Follett poderia ter feito melhor.