Flávia Menezes 07/06/2023
?A MORTE É BEM MAIS DO QUE UM CORAÇÃO PARADO.
?A Travessia? é um romance western do escritor norte-americano Cormac McCarthy que juntamente com ?Todos os Belos Cavalos? e ?Cidades da Planície? faz parte da ?Trilogia da Fronteira?. Publicado em 1994, neste ano o livro ganhou (em terras tupiniquins) uma nova edição pela Editora Alfaguara. Mas muito embora se trate de uma trilogia, não vemos neste segundo livro nenhum dos personagens que conhecemos no primeiro romance. Aqui acompanhamos uma nova história, do jovem vaqueiro (cowboy) Billy Parham, que nos cede um espaço no seu cavalo, e nos leva nessa grande aventura.
Assim como no primeiro livro, neste também encontramos a história de uma família bem simples, de cowboys trabalhadores e sem nenhuma posse, que precisam pegar uma loba que tem atacado o rebanho, e matado algumas vacas e bezerros.
O que mais marca neste começo, é a forma como os filhos, Billy e Boyd, obedecem ao pai sem questionamentos. Como a trama tem início alguns anos antes de estourar a Segunda Guerra Mundial, temos aqui o retrato da família de antigamente, onde pais eram respeitados e ouvidos por seus filhos sem serem contestados.
No mundo atual, ser pai ou mãe pode ser algo bastante desafiador. Especialmente no que se trata da comunicação entre pais e filhos. Nessa Era do TikTok, é comum vermos muitos vídeos de filhos que gravam os pais em situações que podem até parecer cômicas e provocar risos em quem está assistindo, mas a verdade é que não passa de uma exposição dessas pessoas ao ridículo. E muitos desses vídeos são apenas para mostrar uma geração diferente, que não entende muito de tecnologia, que não conhece os nomes da atualidade que encabeçam o cenário das mídias sociais, mas que ainda assim (acredite!) tem muito mesmo a nos oferecer e ensinar.
Uma coisa que percebo na atualidade, é que não temos mais apenas gírias, como antigamente. Hoje é praticamente uma linguagem nova, que vejo muitos jovens usando com seus pais (e até avós), sem sequer se dar o trabalho de explicar. É como se houvesse uma obrigatoriedade em saber o que estão dizendo, e se você não entende... está automaticamente excluído da conversa como um ignorante analfabeto. Tankar, dropar, mitou... está cada vez mais difícil acompanhar essa linguagem coloquial que se expande a cada dia! Mas será que saber usar as gírias da moda e bancar os descolados e antenados é tudo o que precisamos? Será que esses conhecimentos da moda da atualidade substituem os ensinamentos e a sabedoria do passado? Quer saber? Hablei!
Mas não é só de obediência aos pais que se faz um jovem vaqueiro no universo de Cormac McCarthy. Mas de muita coragem para enfrentar um mundo bastante cruel e desumano, onde é preciso ser forte para conseguir sobreviver.
O autor constrói sua narrativa a partir de três incursões do protagonista ao México. Em sua primeira viagem, acompanhamos o jovem Billy em sua caçada obstinada à uma loba que está devastando o rebanho das terras onde seu pai trabalha, e o que vemos é muito mais do que uma simples captura de um vaqueiro que precisa eliminar um problema.
Primeiramente o garoto procura compreender a loba. A segue e observa cada um de seus passos, inclusive percebendo que ela leva alguns filhotes em seu ventre. Depois, ao conseguir enfim capturá-la, somos tomados pela mesma compaixão que o garoto, que parte dos Estados Unidos rumo ao México, unicamente para devolver o animal ao seu verdadeiro lar. Uma viagem dura, e de uma relação entre o menino-homem e a loba que vai crescendo a cada momento. O mais interessante é que Cormac não desenvolve seus cowboys como meninos sentimentais, e ainda assim, conseguimos sentir em seu jeito bronco, o quanto ele passa a respeitar o animal, e o seu desejo de devolvê-la ao seu lar, se torna um grande objetivo em sua vida.
Para a psicologia, o lobo representa o organizador. Sempre atento ao planejamento, com pontualidade e controle, o lobo é detalhista, conservador, metódico, previsível e leal. Essas são as características que vemos Billy desenvolver nessa sua primeira viagem.
Nesses dois primeiros livros da trilogia, ambos os protagonistas se colocam em jornadas onde cruzam a fronteira entre os Estados Unidos e o México. Essa fronteira tem um forte poder simbólico da divisão entre as culturas, os povos, e quando os personagens entram nessa nova terra, eles também partem para uma jornada de crescimento pessoal.
Tanto em ?Todos os Belos Cavalos? quanto em ?A Travessia?, o México surge como uma metáfora para um mundo selvagem e corrupto que o autor contrasta com a própria corrupção humana. Através da natureza, vemos os personagens em uma busca constante por valores e sentimentos dignos. Apesar de trazer essa realidade que tem sempre em voga uma vida crua e cruel, a literatura que Cormac desenvolve com essas histórias é mais autêntica e original. Nela vemos que os animais ganham um peso simbólico fundamental, e toda essa sabedoria e violência encontrada no mundo selvagem que coloca seus personagens nessa luta pela sobrevivência, é um contraponto à selvageria de uma civilização corrompida pela violência gratuita, a injustiça e a maldade humana.
A história é bastante rica em metáforas, e o protagonista, em sua jornada de crescimento, enfrenta muitas dificuldades, e nestas um pouco mais de 400 páginas, estamos ao seu lado e podemos sentir suas frustrações, porque a verdade é que tudo o que ele se propõe a fazer pode até ter algo muito digno por trás, mas infelizmente, seu destino não é alcançar sucesso em nada do que ele se determinou a empreender.
Muito embora eu tenha tecido muitos elogios à história de Cormac, preciso advertir aqui que apesar da prosa poética que muitas vezes chega até a flertar com o fantástico, essa é uma história muito lenta, de pouca ação, e onde tudo (e quando digo tudo, é tudo mesmo!) acaba dando errado.
Confesso que a minha vontade foi de chegar ao final e dar 4 estrelas ao livro. Mas sinto que é até mais sincero essa meia estrela a menos, porque é um livro onde você precisa ter muita paciência, porque a sensação é que ele (Billy) roda, roda, roda... e nunca sai do lugar.
Por muitas vezes, me senti subindo e descendo daquele cavalo, conhecendo novas pessoas e passando por fome e frio, de uma forma cíclica que parecia não ter mais fim. Mas preciso dizer que existe uma mágica nessa escrita do Cormac que me prende de um jeito, que eu não senti a mínima vontade em abandonar essa história. Eu sempre quero mais, e mais. Mesmo que precise dar um intervalo nas leituras, pelo ritmo altamente lento da história.
Ainda preciso de um tempo para processar um pouco mais dessa história, mas eu confesso que estou bastante curiosa pelo 3º volume da trilogia, especialmente por saber que os protagonistas do primeiro e segundo irão se encontrar, e viverão essa trama final juntos. E eu não vejo a hora de ver tudo o que eles enfrentarão, e que final Cormac reserva para esses dois meninos (John e Billy) que acompanhei crescer e por quem torci tanto! Sei que esse não é um autor de finais felizes, mas estou na torcida para que possam, pelo menos uma vez, alcançar um pouquinho de felicidade. Não seria pedir muito, não é mesmo Cormac? Eu espero que não!