Carla.Parreira 11/10/2023
We
?
O autor explica que o amor romântico não é apenas uma forma de amor, mas é todo um conjunto psicológico, uma combinação de ideais, crenças, atitudes, e expectativas. Estas ideias, frequentemente contraditórias, coexistem no nosso inconsciente e, sem que percebamos, dominam nossos comportamentos e reações. Inconscientemente, predeterminamos como deve ser um relacionamento com outra pessoa, o que devemos sentir e mesmo o que devemos lucrar com isso.
Se nós ocidentais conseguirmos libertar as nossas presunções e expectativas inconscientes da servidão maquinal, não apenas atingiremos uma nova consciência em nossos relacionamentos, como também uma nova consciência de nós próprios. Somos a única sociedade a cultivar o ideal do amor romântico e a fazer do romance a base de casamentos e relacionamentos amorosos.
O ideal do amor romântico irrompeu na sociedade ocidental durante a Idade Média, surgindo pela primeira vez na literatura no mito Tristão e Isolda, depois nos poemas e nas canções de amor dos trovadores. Era conhecido como amor cortês, e tinha por modelo o intrépido cavaleiro que honrava uma bela dama e fazia dela a sua inspiração, o símbolo de toda a beleza e perfeição, o ideal que o incentivava a ser nobre, espiritualizado, refinado e voltado para assuntos elevados. Os ocidentais são filhos da pobreza interior, se bem que por fora aparentam ter tudo. O mundo moderno levou o homem a colocar o amor e o sentimento a serviço do poder e do lucro. Passamos nossos dias pensando apenas em como progredir, como vencer ou conseguir uma posição melhor nos negócios e na sociedade, como fazer para que nossa família e os amigos façam exatamente o que queremos que seja feito. Nós nos esquecemos de como ser fiéis aos nossos próprios valores, ao nosso self interior, às pessoas que amamos.
Nós precisamos aprender a fazer passeios ao sol, a observar as cores da terra, a respeitar nosso corpo físico, a despertar para a música da vida, a dar ouvidos aos nossos sonhos e a demonstrar afeto pelas pessoas que amamos. Isso faz parte do lado feminino em equilíbrio (tanto no homem quanto na mulher), algo que só se consegue deixando de lado as atitudes patriarcais enraizadas.
Uma das grandes virtudes do feminino interior é a capacidade de soltar, de abrir mão do controle do ego, de parar de tentar controlar as pessoas e as situações, de deixar as circunstancias a cargo do destino e ceder ao curso natural do universo. Abrir mão do remo e da vela significa abandonar o controle pessoal e colocar-se à disposição de Deus. A harpa no mito representa o poder de desenvolver um senso de valores, de afirmar o que é bom e verdadeiro, de apreciar o belo. Ela permite que o herói coloque a espada a serviço de um ideal nobre. Nossa historia mostra que a harpa nos permite viajar pelos mares do inconsciente. Para ser completo, o herói necessita ter as duas coisas, pois sem a espada a harpa se torna ineficaz e, sem a harpa, a espada fica reduzida à força bruta, egoísta. Deixar a espada significa parar de tentar entender pelo intelecto ou pela lógica, parar de tentar forçar as coisas. Usar a harpa significa esperar pacientemente, ouvindo a voz suave que vem de dentro, esperar pela sabedoria que vem não da lógica ou da atividade, mas do sentimento, da intuição, do não racional e do lírico. Quando se consegue isso, percebe-se que existe algo de assustador nesses enormes conjuntos de crenças culturalmente transmitidos. Um dia nos damos conta de que estamos completamente dominados por este conjunto de crenças que nós, como indivíduos, nunca escolhemos. É como se tivéssemos absorvido tais crenças de romances e filmes, da atmosfera psicológica que nos cerca, e elas se tornassem parte integrante de nós mesmos, como que fundidas às celulas de nosso corpo. Tudo isso está escrito, letra por letra, numa camada invisível do nosso inconsciente. É por isso que uma das grandes necessidades das pessoas de hoje é compreender a diferença entre o amor humano, como base para um relacionamento, e o amor romântico, como um ideal interior, um caminho para o mundo interior.
O amor não sofre ao ser libertado do esquema de crenças do amor romântico. A situação do amor só irá melhorar quando for diferenciado do romance.
Na paixão o que buscamos é o senso de plenitude. O amor romântico teve seu início como um caminho de aspiração espiritual e inconscientemente, hoje, procuramos este mesmo caminho através do amor conjugal. No simbolismo da poção do amor, deparamo-nos subitamente com o maior paradoxo e o mais profundo mistério da nossa cultura ocidental: o que buscamos incessantemente no amor romântico não é apenas o relacionamento ou o amor humano, mas também uma experiência religiosa, uma visão de plenitude. Aqui está o significado da magia, da feitiçaria, do sobrenatural na poção do amor.
Existe outro mundo fora da visão do ego: é o reino da psique, o reino do inconsciente. É lá no inconsciente que vive Deus, seja Deus quem for para nós enquanto indivíduos. O amor romântico tenta vivenciar o mundo divino através de um êxtase ardente, envolvente, que nos preenche e nos faz sentir psicologicamente inteiros, totalmente plenificados e em contato com o significado da vida. Ao vislumbrar a psique como alma, como realidade, Jung nos levou de volta às raízes da religião. Ele descobriu que a estrutura psicológica de cada indivíduo inclui uma função religiosa independente. Isto não quer dizer que exista uma necessidade de se seguir um credo ou um dogma em particular. Mas significa que cada ser humano vem com o impulso psicológico inato para encontrar um significado na vida. Todos nós sentimos algo dentro de nós que nos leva a crer na possibilidade de nos tornarmos seres completos, de ver o significado real da vida, de virmos a nos conhecer totalmente. Somos seres psicológicos: nossa maior parte não é de natureza física, mas psíquica, e a maior parte da psique está no inconsciente.
Não temos a sensação de plenitude e de realização, e não nos sentimos inteiros dentro do pequeno mundo do ego. Sentimos que além dele existe mais, muito mais, apesar de não sabermos onde procurar e nem o que procurar. É uma séria descoberta saber que pegamos nosso instinto de totalidade e o projetamos inteiramente nos nossos amores. É por isso que homens e mulheres exigem coisas tão impossíveis de seus relacionamentos: nós realmente acreditamos, inconscientemente, que esse ser humano mortal tem a obrigação de nos manter sempre felizes, de tornar nossa vida significativa, vibrante, plena de êxtase. Quando uma mulher se apaixona, é o animus que ela vê projetado no homem mortal que está diante dela, e quando um homem bebe da poção do amor, é a anima, a sua alma, que ele vê sobreposta à imagem da mulher. Todo ser humano precisa aprender a relacionar-se com pessoas e situações externas, mas é igualmente importante, e até mesmo mais premente, que ele aprenda a relacionar-se com seu próprio self. Enquanto ele não aprender a enfrentar as razões, os desejos e as possibilidades ainda não vividas, que jazem no âmago do seu coração, ele não vai poder sentir-se interiormente completo, nem verdadeiramente realizado. Esta força interior, que constantemente nos impele a experimentar valores e possibilidades não vividas, é a mais impressionante força na vida humana. O homem precisa relacionar-se com o mundo exterior tendo por base a força da unidade interior, pois o sentido maior da vida deve ser procurado dentro de si mesmo e só vai ser encontrado quando, finalmente, o homem trilhar os caminhos solitários de sua alma.
No início, quando ainda era um ideal espiritual, o amor cortês não permitia a sexualidade ou o casamento entre os enamorados. Eles sentiam que a vibração transcendental contida na adoração não podia misturar-se com um relacionamento pessoal, com o casamento ou o contato físico. Nós, pelo contrário, sempre misturamos romance com sexo e casamento.
O principal conceito que não se modificou no decorrer dos séculos é a nossa crença inconsciente de que o amor verdadeiro deve ser uma adoração religiosa mútua tão irresistível que nos faça sentir que todo o céu e a terra nos são desvelados através deste amor. Mas, ao contrário dos nossos antepassados corteses, tentamos trazer esta adoração para a nossa vida pessoal misturando-a com o sexo, o casamento, o preparo do café da manhã, as contas a pagar e os filhos para criar. Isso leva as pessoas a um sofrimento indecifrável, pois sua explicação está escondida no inconsciente. Até para sofrer é preciso ter sabedoria. Sofrer com consciência significa sobreviver à morte do ego, acabar com as projeções, não mais buscar o mundo divino num cônjuge, e ao invés disso, encontrar a própria vida interior como um ato psicológico e religioso. Significa assumir a responsabilidade de descobrir a própria totalidade, as possibilidades inconsciente. Significa questionar nossos velhos padrões e estarmos ansiosos por mudá-los. Tudo isso envolve conflito, auto-questionamento, e ainda trás à tona duplicidades que preferiríamos não ter que enfrentar. É algo doloroso e difícil. Nossas falsidades frequentemente expressam necessidades e desejos inconsciente mais profundos, aqueles que não conseguimos reconhecer conscientemente.
Mas esta afirmação não nos dá carta branca para enganar ou trair. Se aprendêssemos a procurar a verdade que existe dentro de nossas fraudes, seja quando mentimos para nós mesmos ou quando mentimos aos outros, então poderíamos responsabilizar-nos por essas verdade e passar a vivê-las francamente, honestamente. Interessante notar que a moralidade humana diz a um homem para ser fiel, mas a moralidade do romance diz para ele ir atrás da anima, ou seja, a projeção erroneamente encontrada numa mulher externa. Se nosso compromisso é apenas ir aonde a paixão nos leva, então não podemos ser verdadeiramente fiéis a alguém. A lealdade e o compromisso são arquétipos da nossa estrutura humana e nos são tão necessários quanto o alimento e o ar. Desta profunda necessidade humana de ter relacionamentos estáveis, sinceros e duradouros, surge a moralidade do compromisso. Se examinarmos claramente, começaremos a perceber que o romance é um sistema de energia completamente diferente, um conjunto de valores totalmente distintos do amor e do compromisso. Somente conseguiremos nos comprometer com alguém quando nos dispusermos a ficar com esse alguém sem fazer dele/a uma representação para nós do ideal de perfeição ou do reflexo de nossa alma. Isso é uma tarefa árdua.
Ao acreditar que quando as projeções se evaporam lá se vão as bases de um casamento ou de um relacionamento, a maioria das técnicas para salvá-los acabam por se revelarem meras formulas de manipulação destinadas a manter vivas as projeções. Não ocorre aos ocidentais de hoje que um relacionamento possa ser construído entre dois seres humanos mortais, que eles possam amar-se como pessoas comuns e imperfeitas, e que possam, simplesmente, permitir que as projeções se desvaneçam. É justamente isso, no entanto, que é necessário. Em ultima análise, os únicos relacionamentos duradouros serão aqueles entre os casais que se veem como pessoas comuns, imperfeitas, e que se amam sem ilusões ou sem esperar coisas impossíveis um do outro.
O teste da verdadeira individualidade inclui a capacidade de se relacionar com outra pessoa e de respeitá-la como um ser individual. Nunca devemos projetar nossa culpa em alguém externo. Assim nós mudamos de relacionamento, mas como o padrão é o mesmo, mais ou menos tempo, voltamos ao velho estilo de vida com os mesmos problemas afetivos.
A real capacidade de afeição aumenta a medida em que nos tornamos um indivíduo completo e sem projeções. A simplicidade é uma necessidade da vida humana: é a arte de encontrar sentido e alegria nas coisas pequenas, naturais e corriqueiras. Se um relacionamento direto, simples e espontâneo nos oferece felicidade, geralmente não aceitamos por ser simples demais e monótono.
Estamos condicionados a respeitar apenas o que é exagerado e pomposo, o que é grande, complicado ou altamente excitante. Nós, ocidentais, não acreditamos realmente que possamos vivenciar nossos deuses e nossa vida espiritual, como uma experiencia intima, e ao mesmo tempo levar uma vida comum, no dia a dia. É difícil para nós conceber a ideias desses dois mundos, interior e exterior, coexistindo ao mesmo tempo num ser humano. Por isso que tentamos sempre materializar o mundo divino em alguém ou em algo fora de nós mesmos. A ilusão é um relacionamento distorcido entre o interior e o exterior. Fazemos nascer a ilusão ao sobrepormos nosso mundo interior de imagens, nosso fluxo contínuo de fantasia, ao mundo exterior e às pessoas que vivem nele.
O mundo ilusório é o mundo projetado, que assim distorce tanto o interior quanto o exterior, de maneira que não conseguimos enxergar nenhum deles tal como é. Quando não temos vida religiosa suficiente, o reino divino precisa encontrar-nos onde quer que seja possível, até mesmo nos preparando armadilhas.
Nós temos igrejas, dogmas, doutrinas, opiniões, grupos e reuniões; mas muitas vezes não temos vida religiosa porque damos pouca atenção à nossa alma e à nossa vida interior. Ser capaz de um verdadeiro amor significa amadurecer, ter atitudes realísticas para com o outro. Significa aceitar a responsabilidade pela nossa própria felicidade ou infelicidade; e não esperar que o outro nos faça feliz, nem culpá-lo por nosso mau humor ou por nossas frustrações. Dentro do amor humano está a amizade, seja no casamento ou em qualquer relacionamento. Quando um homem e uma mulher são verdadeiramente amigos eles conhecem os pontos difíceis e as fraquezas do outro, mas não cedem à tentação de criticá-los. Estão mais interessados na ajuda mútua e no prazer que sentem na companhia um do outro, do que em descobrir os defeitos ou se desgastarem com exigências e imposições. A amizade acaba como o teatro, com as emoções artificiais de um relacionamento, com o egocentrismo e com a improdutividade, e substitui o frama por algo humano e real. Concordo com o autor que devemos aprender a ser amigos, a viver juntos no espírito da amizade, a ter como guia a virtude da amizade para sair do emaranhado que fizemos do amor.