Carla.Parreira 17/11/2023
Uma mente inquieta: memórias de loucura e instabilidade de humor (Kay Redfield Jamison). Melhores trechos: "...Eu não acordei um dia e me descobri louca. A vida não é tão simples assim. Em vez disso, fui percebendo aos poucos que minha vida e minha mente estavam atingindo uma velocidade cada vez maior até que afinal, durante meu primeiro verão no corpo docente, as duas me escaparam ao controle, girando loucamente... Há um tipo especial de dor, exultação, solidão e pavor envolvidos nessa classe de loucura. Quando se está para cima, é fantástico. As idéias e sentimentos são velozes e freqüentes como estrelas cadentes, e você os segue até encontrar algum melhor e mais brilhante. A timidez some; as palavras e os gestos certos de repente aparecem; o poder de cativar os outros, uma certeza palpável. Descobrem-se interesses em pessoas desinteressantes. A sensualidade é difusa; e o desejo de seduzir e ser seduzida, irresistível. Impressões de desenvoltura, energia, poder, bem-estar, onipotência financeira e euforia estão impregnadas na nossa medula. Mas, em algum ponto, tudo muda. As idéias velozes são velozes demais; e surgem em quantidades excessivas. Uma confusão arrasadora toma o lugar da clareza. A memória desaparece. O humor e enlevo no rosto dos amigos são substituídos pelo medo e preocupação. Tudo que antes corria bem agora só contraria - você fica irritadiça, zangada, assustada, incontrolável e, totalmente emaranhada na caverna mais sinistra da mente. Você nunca soube que essas cavernas existiam. E isso nunca termina pois a loucura esculpe sua própria realidade. A história continua sem parar, e finalmente só restam as lembranças que os outros têm do seu comportamento - dos seus comportamentos absurdos, frenéticos, desnorteados - pois a mania tem pelo menos o lado positivo de obliterar parcialmente as recordações. E então, depois dos medicamentos, do psiquiatra, do desespero, depressão e overdose? Todos aqueles sentimentos incríveis para desembaralhar... Quando estou nas alturas, não conseguiria me preocupar com dinheiro mesmo se tentasse. Por isso não me preocupo. O dinheiro aparece; eu tenho direito; Deus dará. Os cartões de crédito são um desastre; os cheques pessoais ainda piores. Infelizmente, para os maníacos em todo caso, a mania é uma extensão natural da economia. E com os cartões de crédito e as contas bancárias, são poucas as coisas que estão fora do alcance. Pois eu comprei doze kits para picada de cobra, com uma sensação de urgência e importância. Comprei pedras preciosas, mobília elegante e desnecessária, três relógios com uma hora de intervalo entre as aquisições (mais na faixa do Rolex do que na do Timex ? na mania, o gosto pelas coisas finas vem à tona, é a própria tona, como bolhas de champanhe) e roupas de sereia totalmente inadequadas. Durante um desses episódios em Londres, gastei algumas centenas de libras em livros com títulos ou capas que de algum modo me cativavam: livros sobre a história natural da toupeira, vinte exemplares variados da Penguin porque achei que ficaria bonito se os pingüins pudessem formar uma colônia. Uma vez roubei uma blusa de uma loja porque não ia conseguir esperar nem mais um minuto pela mulher-de-pés-de-melaço à minha frente na fila. Ou talvez eu tenha apenas pensado em roubar a blusa, não me lembro, minha confusão era total. Imagino que devo ter gasto mais de trinta mil dólares durante meus dois episódios mais importantes de mania, e só Deus sabe quanto mais gastei durante minhas freqüentes manias mais brandas. De volta ao lítio, porém, e girando no planeta no mesmo ritmo que todas as outras pessoas, descobre-se que seu crédito está dizimado; a mortificação é completa. A mania não é um luxo que se possa sustentar com facilidade... Eu me senti infinitamente pior, e deprimida num nível mais perigoso, durante esse primeiro episódio de mania do que quando estava no meio das minhas piores depressões. Na realidade, na minha vida inteira ? caracterizada por altos e baixos caóticos ? a época em que me senti pior foi a primeira vez em que tive um surto psicótico de mania. Eu havia tido episódios brandos de mania anteriormente, mas aquelas experiências nunca haviam sido assustadoras ? inebriantes na melhor das hipóteses, desnorteantes, na pior. Eu havia aprendido a me adaptar muito bem a elas. Havia desenvolvido mecanismos de autocontrole, de modo a moderar acessos de riso excepcionalmente inconvenientes e a impor rígidos limites à minha irritabilidade. Eu evitava situações que poderiam, de outro modo, desengatar ou emaranhar minha fiação hipersensível; e aprendi a fingir que estava prestando atenção ou acompanhando um raciocínio lógico quando minha cabeça estava longe perseguindo borboletas em mil direções... Cada vez mais, todas as minhas imagens eram sinistras e de decomposição... Dias intermináveis e apavorantes de medicamentos interminavelmente apavorantes - Torazine, lítio, Valium, barbitúricos - afinal surtiram efeito. Cheguei a sentir minha mente sendo controlada, desacelerada e posta para descansar. Mas demorou muito tempo para que eu voltasse a reconhecer minha mente, e muito mais ainda para eu confiar nela... A única anotação feita pelo meu psiquiatra no dia anterior à minha tentativa de suicídio foi a seguinte: Seriamente deprimida. Muito calada... Os hospitais psiquiátricos não são lugares incomuns para o suicídio. Depois dessa experiência, elaborei um acordo inequívoco com meu psiquiatra e com a família no sentido de que, se eu voltar a entrar em depressão profunda, eles têm a autoridade para aprovar, contra minha vontade se necessário, tanto a terapia de eletrochoque, excelente tratamento para certos tipos de depressão severa, quanto a hospitalização... No meio dos meus dezoito meses indescritivelmente terríveis de luta contra a depressão suicida, concluí que ela é o meio encontrado por Deus para manter os maníacos no seu lugar. E funciona. A melancolia profunda é uma agonia quase no nível arterial, presente as vinte e quatro horas do dia, É uma dor inexorável e cruel que não oferece nenhuma abertura para a esperança, nenhuma alternativa a uma existência lúgubre e nauseante, e nenhuma folga das frias correntes ocultas do pensamento e sentimento que dominam as noites horrivelmente inquietas do desespero... Num vínculo irracional criado na minha cabeça, eu achava que, como o piloto que eu havia visto se matar para salvar as vidas de outros, eu estava agindo da única forma justa para com as pessoas de quem eu gostava. Era também a única decisão sensata a tomar para meu próprio bem... Cada um de nós se move dentro das limitações do seu temperamento e preenche apenas parcialmente suas possibilidades. Trinta anos de convivência com a doença maníaco-depressiva me deixaram cada vez mais consciente tanto das limitações quanto das possibilidades que a acompanham... Há sempre uma parte da minha cabeça que se prepara para o pior, e outra parte que acredita que, se eu me preparar bem, o pior não acontecerá..."