3.0.3 10/02/2024
A mão que sulca a terra é a mesma que escreve o poema
“O outono. Nossa barca elevada nas brumas imóveis navega em direção ao porto da miséria, a cidade enorme de céu sujo de fogo e lodo. Ah! Os farrapos podres, o pão ensopado de chuva, a embriaguez, os mil amores que me trazem crucificado! Não acabará um dia este vampiro, tirano de milhões de almas e de corpos mortos que serão julgados! Revejo-me de pele corroída pelo lodo e pela peste, cabelos e axilas cheios de piolhos, e piolhos mais gordos ainda no coração, estendido entre desconhecidos sem idade, sem sentimento... Bem poderia acabar aí... A horrenda evocação!”
Arthur Rimbaud (1854-1891) fez uma entrada surpreendente em Paris, transformando completamente a percepção da poesia e erradicando o parnasianismo predominante da época. Reconhecido como o maior poeta rebelde, Rimbaud revolucionou a literatura, conseguindo tudo isso antes dos vinte anos. Dizemos, portanto, que Rimbaud simboliza a própria juventude, uma vez que os seus poemas funcionam como expressões inaugurais e finais da arte.
A obra Uma temporada no inferno (1873) é o único livro lançado pelo poeta, que, após uma passagem tumultuada pelo mundo literário, abandonou a poesia em busca de riqueza. Posteriormente, uma seleção de suas obras foi impressa, e ele apareceu em uma compilação com curadoria do poeta Paul Verlaine (1844-1896), com foco no grupo conhecido como "poetas malditos". Essa classificação não era injustificada, já que Rimbaud era considerado um gênio e um encrenqueiro. Com espírito visionário e pouco convencional, rejeitou veementemente qualquer forma de trabalho burocrático, afirmando que a única vocação do poeta deveria ser a poesia.
O impacto de Rimbaud no mundo literário foi ofuscado pelo fascínio que rodeava a sua vida pessoal, particularmente o seu caso com o renomado poeta francês Paul Verlaine, que era mais velho que Rimbaud. O jovem poeta possuía uma força tão revolucionária que influenciou profundamente Verlaine, fazendo com que este abandonasse a esposa para embarcar numa viagem com Rimbaud, chocando a sociedade francesa. Alimentado por haxixe e absinto, o relacionamento deles tomou um rumo tumultuado em 1872, quando Verlaine, consumido pela melancolia, feriu Rimbaud com um tiro no pulso durante uma discussão. Desesperado, Rimbaud procurou consolo no nordeste da França, onde escreveu sua famosa obra: Uma temporada no inferno.
Tudo se iniciou em um pequeno vilarejo nas Ardenas, em 1873. Residindo com sua família numa casa em ruínas herdada por seu avô, Rimbaud acabara de voltar de Londres e estava viciado em haxixe, tabaco e álcool, o que o levava a ter febres e alucinações. Este é o cenário em que escreveu o seu último livro, considerado um verdadeiro testemunho de uma batalha entre um homem e sua consciência. Mas ele continuou seguindo: partindo em direção às suas próprias sombras, também questionou o mundo e suas convenções. Uma temporada no inferno é um clássico da poesia simbolista que mistura ideias e conceitos associados à morte, à paixão, ao inferno, ao cristianismo e à história francesa no final do século XIX. Tendo a ira da juventude em si e a revolta contra a hipocrisia derivada da figura de sua mãe, Rimbaud aprendeu a condensar a raiva em versos, tornando-se o maior entre os “poetas malditos”. Nesse sentido, nenhum título poderia ser mais apropriado para um poeta que tinha uma reputação tão destrutiva.
“Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias. Escutai! Possuo todos os talentos. Aqui não há nada e há alguém. [...] Estou escondido e ao mesmo tempo não o estou.”
Em Uma temporada no inferno, ele apresenta o território de sua luta, revela a sua narrativa e fala que o "sangue ruim" que corre em suas veias, proveniente de sua herança gaulesa, definirá a dramaticidade da sua vida, pois ele limita a sua mente, o seu corpo e o seu espírito. No entanto, o poeta sofre com dois passados: os valores gauleses e os valores burgueses derivados do pai. Desse ponto em diante, Rimbaud profetiza como um místico os aspectos que ordenam e racionalizam uma sociedade governada majoritariamente pelos valores do catolicismo. Além disso, expõe a sua falta de esperança na felicidade. Ainda que as experiências vividas pelo poeta durante esse percurso infernal o façam ultrapassar diversos limites, no fim, Rimbaud regressa à vida campestre e rústica. E o que sobra desse conflito travado por Rimbaud é apenas a desesperança.
Pouco importa se somos avessos ou favoráveis ao que nos diz Rimbaud. O que realmente importa durante a leitura é atentar àquilo que funda as estruturas humanas, buscando a compreensão da linguagem que supera e enriquece todo o livro. Nesse sentido, a escrita de Rimbaud é o vazio, alcança o limite da existência, troveja, relampeja e naufraga nas lacunas da loucura. De nada adianta buscar sentido para o que não tem sentido, pois os poemas são seres orgânicos em constante respiração, seres que ultrapassam os limites do certo e do errado, chamando para junto de si uma pluralidade de vozes – e a verdade da obra está alinhada com tudo isso. São os golpes intuitivos e sensíveis que compassam os traços verdadeiros da obra. O real significado disso nos diz que Rimbaud abriu mão de tudo, radicalmente, e o que escreve não é matéria de seu interesse, pois é a escrita quem o move. Expondo os contrários que lutam na arena da axiologia e que fundam os pilares humanos, o poeta nos deixa aqui uma estrutura da existência e caminhos possíveis para a existência. Assim, entranha-se em si e vive-se enquanto linguagem.
Nesse caso, é crucial reconhecer uma abordagem de compreensão para Uma temporada no inferno que não pretenda ser um método definitivo de leitura ou uma quantidade de informação que atribua proficiência artística às críticas produzidas sob a obra. Ao expressar isso, destaca-se a necessidade de lembrar que ler poesia exige correr riscos para compreender e diferenciar os princípios que governam o domínio independente da compreensão poética. Durante a leitura, o leitor mergulha na artisticidade da linguagem de Rimbaud, servindo como testemunho da objetividade integral da arte. Assim, Uma temporada no inferno desafia as expectativas da crítica ao perdurar e exigir uma abordagem única para a compreensão da sua verdadeira essência.
A obra rejeita qualquer tentativa de reduzi-la a um mero fato, afirmando antes a sua dignidade artística e ordenando uma leitura que procura a verdade que ele encarna enquanto risco de linguagem. A própria natureza da obra faz com que os leitores se envolvam com a sua verdade contundente, uma vez que adere às leis do rigor artístico, que se apresentam constantemente em novas formas. É precisamente porque a literatura de Rimbaud carrega consigo uma verdade inerente e duradoura que resiste aos golpes do tempo. Ao interagir com essas obras, os leitores são confrontados com elementos reais que ressoam no mundo, exigindo serem reconhecidos por meio de uma compreensão independente.
Uma temporada no inferno coloca o leitor como um devedor moderno, consumido pelo mistério da vida dentro da palavra escrita, linguagem. Como resultado, é preciso mergulhar na verdade – aquela produzida na obra enquanto obra de risco e rasura –, acendendo-a no vasto vazio que existe além da literatura. Esta revelação permite compreender que a independência do conhecimento poético se manifesta nas páginas da obra como uma experiência em si, encarnando a essência da vitalidade. Serve como a personificação da experiência estética, um arquétipo incorporado. O autor levanta questões metafísicas fundamentais em relação à expressão artística, afirmando que a sua consciência é o aspecto definidor da sua humanidade.
Aqueles que leem Rimbaud pela primeira vez talvez sejam assaltados pelo inteligível. Para alcançar a compreensão, ou uma fração dela, deve-se tornar parte de seu mundo, incorporando as suas visões e as suas sensações. Rimbaud escreve o desespero, a dor e a pobreza com genialidade e lucidez. Registra-se que o poeta era visionário. Teria ele enlouquecido ou seria apenas consequência de uma mente fértil? Não há resposta. O certo é que, em Uma temporada no inferno, Rimbaud fundou uma nova linguagem. Com a desconstrução da métrica alexandrina, levou a prosa poética ao panteão das grandes poesias, causando uma significativa mudança no mundo literário.
“A vida floresce pelo trabalho, velha verdade: quanto a mim, minha vida não é suficientemente pesada, voa e flutua distante, por cima da ação, esse adorado eixo do mundo.”