jota 09/11/2020MUITO BOM (o inquieto Coetzee está sempre surpreendendo seus leitores)Se a formatação do Diário de Um Ano Ruim (Companhia das Letras, 2008) não fosse como é, uma ruptura com a ficção tradicional – páginas divididas em três seções de textos a maior parte do tempo –, talvez a narrativa não ficasse tão interessante como ficou. Também é verdade que uma história sem linearidade como essa não é lá muito confortável de acompanhar: o leitor tem de escolher de que modo lerá tudo até o final. Na parte superior das páginas, rolam as opiniões de um conhecido escritor – que em muito se parece com J. M. Coetzee – a refletir sobre diversos assuntos, alguns contemporâneos, outros universais, filosóficos. Enquanto isso, nas outras duas seções, corre simultaneamente uma mesma história de relacionamentos contada pelos dois protagonistas principais, da qual também participa um terceiro personagem.
Esses personagens são o próprio escritor setentão, às vezes chamado simplesmente de JC, Anya, uma sedutora jovem filipina de 29 anos, e Alan, seu amante invejoso (ou inescrupuloso, depende), uns doze anos mais velho que ela. A história toda começa quando o escritor, um sul-africano radicado na Austrália (como se passou com o próprio Coetzee), é convidado por um editor alemão para emitir suas opiniões contundentes (ou fortes, conforme a edição brasileira) sobre temas contemporâneos, que depois serão editadas num livro. Ele precisa do auxílio de alguém para digitar seus textos, porque está um tanto incapacitado fisicamente para a tarefa. É aí que entram os demais personagens.
O ano ruim do título refere-se, na verdade, aos meses entre setembro de 2005 e maio de 2006 e um pouco mais de tempo. Dele resultarão 31 pequenos ensaios ou “opiniões fortes” do escritor versando sobre Thomas Hobbes (1588-1679), anarquia, democracia, Nicolau Maquiavel (1469-1527), terrorismo, pedofilia, matança de animais, competição, design, probabilidade, direita e esquerda, música, ecologia, experimentações genéticas, globalização etc. Depois, na segunda parte do livro, num segundo diário, as coisas ficarão mais pessoais, íntimas: nele o escritor registra outros 24 tópicos, que versam sobre um sonho perturbador que teve, seu pai, a vida erótica, envelhecimento, vida de escritor, a língua inglesa, ser fotografado, ter pensamentos, compaixão, tédio, Bach, Tolstoi, Dostoievski...
Misturado a isso tudo (o conteúdo dos dois diários) estarão Anya, a jovem filipina e seu caso amoroso (ou erótico) com Alan, um agressivo especialista em investimentos financeiros. Isso e mais o relacionamento do escritor com o casal é contado nas duas seções inferiores das páginas. De tudo resulta que Coetzee faz, através das reflexões do idoso escritor e das relações entre os personagens, digamos assim, um balanço entre aquilo que a alma humana tem de sórdido e também de digno. Os três vivem num mesmo e enorme edifício de apartamentos e o idoso conhece Anya por acaso, na lavanderia do condomínio. Quando a vê pela primeira vez, ele a descreve para nós como um radioso dia de primavera, maravilhado que fica por seu corpo, sua juventude e beleza.
Inicia com ela uma pequena conversa, fica sabendo que Anya está “entre trabalhos” (desempregada, na verdade) e ele, como já foi dito, necessita de alguém que, a partir de fitas gravadas (que contêm os ensaios para o editor alemão) transcreva o conteúdo delas para arquivos em disquete. Os pendrives existiam desde 2000, mas não nos formatos e capacidades desenvolvidos depois, não eram populares então. Isso não importa, vamos com os (obsoletos) disquetes mesmo. O que importa é que JC fica encantado com a moça e, sem pensar muito, lhe oferece o serviço. Ela aceita, tudo bem, tudo se encaixa numa relação comercial entre os dois. As coisas vão caminhando bem, o serviço dela corresponde ao que JC desejava, mas ele constantemente pensa nela. Ela também pensa nele, mas de outra maneira.
A coisa muda bastante de figura quando Alan, o amante de Anya (ele já foi casado antes) entra em cena com força, a princípio enciumado, porque imagina que o escritor poderia estar usando a moça como personagem para um futuro romance, escrevendo sobre ela disfarçadamente. Discute com a jovem sobre essa possibilidade, mas Anya não acredita nisso, defende o escritor, diz que ele a respeita, que nunca tentou nada com ela etc. Porém ela não concorda com todas as opiniões que ele emite em seus textos, acha que tem ideias ultrapassadas etc. Alan ridiculariza os escritos, troça deles, mas o que ele deseja, no fundo, é aproveitar-se financeiramente do idoso, rico para os padrões brasileiros. Já começou a colocar um plano em prática, sem que Anya soubesse, e foi por intermédio dela mesma que as coisas foram possíveis...
Nesse ponto a história adquire um pequeno suspense, mas o forte em Diário... é mesmo o conteúdo do “livro dentro do livro”, inicialmente o contraponto entre “a cultura humanística do velho autor e a energia quase amoral da jovem digitadora”, depois no que resultou para ambos esse contato, o que se transformou neles, como ficamos sabendo através do segundo diário. Que se parece com o que poderia ser o diário do próprio Coetzee, do “ano ruim” em que ele passaria a encarar mais frontalmente certas questões a respeito de si próprio, nem sempre agradáveis para ninguém, por assim dizer: os incômodos, as agruras da velhice. Em 2007, quando o original foi lançado, Coetzee tinha 67 anos; em 9 de fevereiro de 2020 completou 80 anos. Penso que se ele tivesse escrito apenas Desonra (Companhia das Letras, 2000) não precisaria ter feito mais nada na vida...
Lido entre 03 e 08/11/2020.