sonia 21/09/2014tornar-se pretoDizia Jung que veio embora da África antes que se tornasse preto, e com isso queria referir-se à intense ligação do homem com a terra, e o modo de viver das tribos que vai nos religando, a nós, civilizados, com forças poderosas da natureza, forças que desprezamos, mas lá, na África, é impossível ignorar.
Assim, Mia Couto segue pelo mesmo caminho e vai nos levando para dentro do pensamento africano, muito poético, e muito lucidadmente, um de seus personagens esclarece que 'precisamos deixar de ser pretos para sermos simples pessoas'. No context em que é dito, respondendo a um americano que queria resgatar valores africanos, quer simplesmente dizer que é melhor ser respeitado e aceito pelo que se é, deixando de lado os rótulos, afinal, africanos ou europeus, de qualquer cor, merecem o mesmo respeito e tem os mesmos direitos.
Na poética, Mia escolhe os nomes dos lugares como Vila Longe, Antigamente, o que já nos remete a um ambiente de sonho, de lembranças, para ir desfiando o rosário de tragédias que foi-se abatendo sobre aquelas pessoas, especialmente a moça Mwadia, perdida entre as lembranças de seus mortos e seus sonhos desfeitos.
Os acontecimentos da época das navegações portuguesas, resvalando pelos catequistas, terminando pelo Americanos que nesse século vem pesquisar a escravidão, ficam todos surreais, como sem sentido sempre foram, e Mia escolhe uma história bem bizarre para desnortear o leitor: o rei escravocrata que envia seu filho como escravo acorrentado no porão de um navio negreiro para que, ao regressar da viagem e assumer o trono, saiba como negociar com os escravagistas...afinal, o Americano finge não saber, como nossos professors escolares preferem não ensinar, que os pretos se escravizavam entre eles mesmos, uma tribo vendendo gente da outra, comércio milenar que existiu desde a Antiguidade, e não foram os portugueses que começaram com esse horror. E por que o título sereia? Sereia porque no continente africano, como aqui no Brasil, o sincretismo religioso trasnformou Nossa Senhora em Rainha das Águas.
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