Rub.88 12/05/2017Voltas em Torno da Arvore do EsquecimentoA busca do particular passado próprio e dos antepassados longínquos para reconhece-se no espelho, entender os traços leves do rosto, as comissuras amargas da boca, as rugas precoces da testa larga, os olhos acostumado a ver o vazio da vastidão, a cor da pele que lhe dá algo que nem sabia existir entre os humanos; Uma raça...
O outro pé da sereia, do escritor moçambicano Mia Couto, conta sobre dois momentos narrativos separados por séculos, mas não plenamente distintos um do outro.
Num período do enredo, algo cai do seu céu e acaba indicando bem indiretamente o lugar de uma estatua de Nossa Senhora a um pastor de cabras. Então, o pastor que se chama Zero Madzero e sua mulher Mwadia Malunga, que moram isolados no meio do mato, levam a imagem a um adivinho que os orienta a procura um lugar sagrado apropriado para depositar a efigie da Virgem. A estatua tem um defeito, falta-lhe um pé. Zero Madzero por razões ocultas não quer ir mais a vila e fica a cargo de Mwadia levar, sozinha, o objeto de culto ao povoado que é o mesmo onde nasceu.
Na outra parte da estória conta-se como a imagem viajou a navio de Goa, Índia, para Moçambique. Benzida pelo próprio Papa e sobre os cuidados de um membro da Companhia de Jesus, Nossa Senhora atravessa o oceano índico num barco que transporta nos porões carga humana. E nessa viagem um padre, que escreve o diário de bordo, sente a fé lhe fraquejar. Uma emprega indiana de uma fidalga se encanta com um tripulante forçado, que tem como função tomar conta do fogo do navio.
No vilarejo, Mwadia encontra velhos conhecidos e familiares. A mãe engordou muito depois que a todas as filhas foram embora. O padrasto abandonou a profissão de alfaiate. Na parede da casa de infância estão os retratos dos ausentes, que na pratica são os mortos. Os personagens um tanto excêntricos do lugar tentam esquecer tudo que já aconteceu com eles e com o mundo. Porem a chegada de dois estrangeiros em busca de suas raízes africanas mostra que escavar esse chão preto não traz somente ouro escasso e pedras preciosas sangrentas. O que mais aflora são ossos escurecidos e relíquias forjadas.
A estatua, já manca e sangrado, chega à costa do império monomotapa onde o mambo local quer que a imagem fique por uma noite no seu quarto, e também que ser batizado. A recusa do clérigo para o segundo pedido faz desencadear eventos que levam a Nossa Senhora a ser abandonada no meio da floresta, onde será encontrada quase 400 anos depois...
Pode parecer que contei a estória toda, mas o foco das linhas escritas por Mia Couto, que foi mantido no vocabulário original do português moçambicano, esta na vergonha, no ressentimento, no sincretismo, no desespero calado, nas lagrimas secas por um passado horrível e da duvidas sobre o modo que se vive a vida.
Talvez o livro sofra com os excessos de aforismos e pelo final dubio, porem a leitura de O outro pé da sereia foi prazerosa.