Alexandre Kovacs / Mundo de K 15/01/2023
Fernando Pessoa - Posia completa de Ricardo Reis
Editora Companhia das Letras - 256 Páginas - Capa e projeto gráfico de Elaine Ramos e Julia Paccola - Lançamento: 2022.
Fernando Pessoa (1888-1935) criou heterônimos com diferentes personalidades imaginárias e estilos, sendo alguns dos mais famosos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares. As odes e poemas de Ricardo Reis guardam alguma semelhança com a poesia de Alberto Caeiro, mas podemos constatar que os questionamentos filosóficos do primeiro estão mais relacionados à brevidade da existência e à necessidade de viver plenamente cada momento: "Nada fica de nada. Nada somos. / Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos / Da irrespirável treva que nos pese / Da úmida terra imposta, / Cadáveres adiados que procriam. / Leis feitas, státuas altas, odes findas – / Tudo tem cova sua. Se nós, carnes / A que um íntimo sol dá sangue, temos / Poente, por que não elas? / Somos contos contando contos, nada." (28-9-1932)
Nesta edição foram reunidas as odes publicadas em vida por Fernando Pessoa e por ele atribuídas a Ricardo Reis, assim como todas as outras odes e poemas atribuídos a esse heterônimo, disponíveis no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa e, na sua quase totalidade, publicados postumamente. Enriquecem este lançamento o texto de Manuela Parreira da Silva, especialista no estudo e recuperação do espólio de Fernando Pessoa, assim como um posfácio inédito, "Tenho mais almas que uma", escrito pelo poeta Paulo Henriques Britto que resume uma verdade inquestionável: "Se a obra pessoana se resumisse aos duzentos e tantos poemas e fragmentos que compõem o corpus de Ricardo Reis – o menos lido e estudado dos quatro principais poetas da constelação Pessoa –, ela já mereceria um lugar de destaque na literatura lusófona do século XX."
66
(3-11-1923)
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
99
(26-4-1928)
Nos altos ramos de árvores frondosas
O vento faz um rumor frio e alto,
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito.
Assim no mundo, acima do que sinto,
Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
E nada tem sentido – nem a alma
Com que penso sozinho.
108
(26-5-1930)
Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é um presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece.
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.
111
(18-6-1930)
No breve número de doze meses
O ano passa, e breves são os anos,
Poucos a vida dura.
Que são doze ou sessenta na floresta
Dos números, e quanto pouco falta
Para o fim do futuro!
Dois terços já, tão rápido, do curso
Que me é imposto correr descendo, passo.
Apresso, e breve acabo.
155
(13-11-1935)
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.
Sobre o autor: Fernando (Antônio Nogueira) Pessoa nasceu em 1888, em Lisboa. Em 1896, dois anos e meio após a morte do pai, foi morar com a mãe e o padrasto em Durban, na África do Sul, onde fez praticamente todos seus estudos – experiência que lhe deu um domínio seguro do inglês, língua na qual escreveu poemas desde a adolescência. Autor de uma obra extraordinária e múltipla, sua produção se desdobraria em muitos heterônimos, sendo Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis os mais célebres. Sob o nome de Bernardo Soares, Pessoa escreveu os fragmentos que mais tarde seriam reunidos em O livro do desassossego. Mensagem, de 1934, foi o único livro de poesia publicado em vida com a assinatura de Fernando Pessoa. O escritor morreu em 1935, em Lisboa.