Abduzindolivros 30/05/2024
O pessoal tem uma invejinha dos robôs, né
Numa Terra superpovoada e sem recursos para todos, milhões de pessoas vivem em cavernas de aço, as novas Cidades, sem acesso ao ar livre, ao solo e à luz solar. Grupos de pessoas, de forma clandestina, desejam sabotar esse sistema para que a humanidade volte aos tempos antigos, reduza a população e possa viver ao ar livre novamente. Esses Medievalistas sentem-se reprimidos pelos Siderais ? grupos de humanos que colonizaram outros planetas há anos, e que vivem em sociedades consideradas superiores aos humanos da Terra, cobrando tributos destes e vivendo em harmonia com robôs.
Nesse contexto, o investigador Elijah Bailey recebe a missão de investigar o assassinato do Embaixador dos Mundos Siderais. Para isso, ele é forçado a conduzir a investigação ao lado de um parceiro nada convencional, o robô Daneel Olivaw, Bailey terá que enfrentar seus preconceitos e descobrirá que muitas coisas nas quais acreditava não são o que parecem...
Asimov foi certeiro na construção do contexto desta história. Visionário tanto ao imaginar os problemas de um planeta superpovoado e as soluções que a humanidade encontraria para lidar com isso. Em ?O Fim da Eternidade? e ?Eu, Robô? estabeleceu os pilares da colonização de outros planetas, e deu continuidade a essa ideia.
A partir disso, também imaginou os problemas sociais e as relações de poder entre as colônias siderais e a Terra. Dá para ver que ele tinha um conhecimento político e histórico muito grande, e que soube projetar isso nessa história, mostrando como as colônias deixaram de ser submissas à Terra e inverteram os jogos de poder através do domínio da tecnologia, da gestão de recursos e do fato de controlarem o número de indivíduos nos outros planetas.
Esse contexto é muito importante para entender a importância do crime cometido e os impactos que poderia trazer para os humanos na Terra. Já entendemos logo de cara que as relações entre a Terra e os Siderais seriam abaladas caso o crime tivesse sido cometido tanto por um humano da Terra quanto por um robô dos Siderais ? o que seria impensável por causa da Primeira Lei da Robótica, mas como os humanos da Terra detestam os robôs, eles não entendem muito bem os avanços que os Siderais alcançaram nessa área...
E conforme Bailey vai descobrindo informações sobre esse mistério, fazendo deduções, cometendo erros e correndo perigo, percebemos que há muitos interesses além de um incidente diplomático, tem muito mais coisas em jogo. Conspirações são descobertas e os objetivos dos Siderais em relação à Terra ficam mais claros. O arco do Bailey é muito interessante, pois ele vai cedendo às suas convicções e mudando de ideia, e ficamos maravilhados vendo como todas as informações e eventos aparentemente sem conexão vão fazendo sentido e se encaixando em tramas muito além da morte do Sideral em si.
O Asimov foi muito mestre em desenvolver os personagens, suas motivações e o suspense em si. Tem reviravoltas que são previsíveis e podemos matar várias charadas muito antes da revelação; mesmo assim, é muito interessante acompanhar até o final, pois Asimov só entrega alguns pontos lá nas últimas páginas. Praticamente tudo o que ele inseriu na trama teve seu papel no final, cada vírgula, frase ou detalhe.
O autor é bom na hora de construir os personagens. Eu diria que não são tão profundos, porém, são bem escritos, a gente se identifica com suas camadas e dilemas. É possível perceber as diferenças de pensamentos e opiniões entre eles, com nuances bem estruturadas. Mesmo não sendo tão profundos, não quer dizer que não sejam bem desenvolvidos.
Com a exceção de personagens femininas. Eu acho que o Asimov nunca prestou atenção em mulheres em toda sua vida, não é possível. Mais uma vez, ele descreve uma mulher ? no caso, a Jezebel, esposa de Bailey ? com uma motivação estapafúrdia, uma personalidade extremamente rasa, comportamentos estereotipados até o talo, e dá para ver que a visão do autor sobre mulheres é a menos elogiosa possível: fúteis, histéricas, e por aí vai.
Tem uma cena com ela que foi de fritar meu cérebro positrônico, pqp. Jezebel está chorando, assustada; aí o Bailey diz para eles saírem de onde estão que ele a acompanhará até em casa. Do nada, ela diz ?ah pera aí, tenho que retocar a maquiagem, não posso sair com a cara inchada? como se fosse a coisa mais normal e importante do mundo, e dá para ver que é só porque o Asimov acha que, sei lá, não importa o que aconteça, a mulher sempre vai ficar bitolada com a própria aparência porque é fútil mesmo e é isso aí.
A cena não teve propósito nenhum. Não serviu para nada. Nem para mostrar um aspecto interessante e relevante da personalidade da Jezebel. Não sou contra que se escrevam cenas que não fazem a trama andar diretamente, mas não é característica do Asimov dar pontos sem nó, trazer detalhes irrelevantes para a amarração das ideias. E foi esse o caso com essa cena; só um reforço das lentes estereotipadas com as quais o autor enxergava suas personagens femininas.
E não é implicância vazia da minha parte, não, já é o terceiro livro dele que leio e noto que o cara era genial em muitos aspectos, mas um zé ruela completo quando se trata de escrever e inserir mulheres na trama. Os homens, sim. Até os robôs ele é capaz de dotar de camadas e descrevê-los com coerência e coesão. Agora, as mulheres... Socorro, Asimov.
Mas, não tem como negar. É mais uma história genial, ele era visionário e sabia escrever uma boa trama de ficção científica, também mandou muito bem nesse romance policial futurista que misturou homens e robôs. Vale muuuito a leitura, com certeza repetirei. Recomendo fortemente.