Sintaxe 10/01/2024
Por uma via não deu certo, tentemos por outra...
De início, tomei como objetivo divertido avaliar esta obra à luz da filosofia kantiana a fim de fazer o balanço dos seus acertos, erros, aproximações e distanciamentos, julgamento que não seria inteiramente superficial - típico de um estudante de filosofia pedante e por vezes arrogante como eu - visto que levantaria a sempiterna questão das adaptações e traduções em um outro registro, a saber, o da ficção histórico-psicológica, difundida ad nauseam entre leitores mais jovens e, arrisco dizer, mais midiaticamente iletrados. Este objetivo, todavia, logo se viu frustrado pois, não só há muito pouco de Kant neste livro supostamente inspirado em suas obras, como não há praticamente nada de filosofia exceto algumas ponderações de ordem ética em paragráfos pontualíssimos, onde a discussão se resume à simples cisão entre Romantismo exasperado e Iluminismo tosco, empapado de "tunnel vision", para me valer de uma expressão da língua inglesa (não resisto em acrescentar que esta cisão é imprecisa e no limite fictícia. O romantismo se opõe sim ao iluminismo; porém, o conteúdo desta oposição não é homogêneo entre os diversos autores nos quais compõem os mosaicos de ambos os lados, visto haver cumplicidades declaradas entre um e outro. Conferir iluministas e românticos tais como Goethe e Schiller, e predecessores dessa mistura, tais como Diderot e o próprio Kant). A coisa é tão grave que a trama retrata a enorme genialidade deste filósofo incomensurável, cujas ideias permeiam nosso pensamento até os dias de hoje; retrata a grandiosidade de sua filosofia como sendo, meramente... um método racional. Incrível! Antes de Kant não éramos racionais! Genial! Sinceramente, é tamanho descaso com qualquer semblante da história da filosofia (isto porque não enumerei as interpretações mesquinhas, típicas da anglosfera, nas quais reduzem o epistemólogo a modesto filósofo da mente) que, se eu for realmente avaliar esta obra sob seus próprios preceitos e desejos, acabaremos com um simples: "é um show de horrores". Então, quais aspectos podemos elogiar? Passemos a isto.
Parcos, os bons elementos são sempre afogados nesse manancial de lama que é a trama investigativa mais incompetente que já li (apesar de não ter lido muita coisa deste tipo, isto é, desta figura mais ou menos recente da indústria cultural, ao menos em seu estado contemporâneo, profundamente influenciado pelas movimentações dos anos setenta). Decerto, muito me agrada a confecção dos ambientes, das estruturas sociais, da atmosfera prussiana. Os objetos, as paisagens, as vestimentas são todas bem descritas, permitindo uma aclimatação, para usar a expressão arantiana em outro contexto, saborosa do leitor neste mundo sombrio e repleto de miasmas da Europa sob ameaça napoleônica. Este fio se tece sozinho, aliás: tremendamente anti-napoleônico, portanto, ironicamente anti-iluminista - em uma narrativa inspirada pelo maior dos iluministas! -, Crítica da razão criminosa é surpreendentemente reacionário. Quer dizer, o autor, ou dupla de autores, mostra o caráter abusivo das autoridades de Königsberg, o sentimento generalizado de paranóia social e os inúmeros preconceitos subjacentes entre os soldados. Se tudo isso faz parecer que uma crítica estará se encaminhando, revelando o que há de nauseabundo nessa cidade pacata, situada no território de um país atrasado e ditatorial, logo somos lembrados das verdadeiras alianças retrospectivas desses autores, ou autor, que, suspeito, se pretenderiam historiadores se não carregassem garbosamente o título de romancistas. Os "bonapartistas" (termo conservador, os hegelianos sabem que as guerras napoleônicas são antes guerras revolucionárias) são sempre piores: pervertidos sexuais, assassinos de criancinhas, loucos em busca de poder. Não à toa nosso querido protagonista, cujo comportamento é intrigante na medida que é autoritário, eventualmente consegue seu final feliz por ter seguido a boa Razão e expulsado o caos do crime. Desvelando, assim, o aspecto moralista ao excesso do texto. Na luta entre bem e mal, lógica e sentimento, ordem e caos, quem prevalece é o velho alazão, agora imagem ideológica para europeus nostálgicos, do positivismo científico. Seria aceitável se tivesse sido escrito dois séculos atrás, mas parece-me que o autor errou de tempo...
Ainda restaria esmiuçar a estupidez do que há de investigativo neste thriller criminal, com soluções óbvias para qualquer leitor minimamente atento, métodos "revolucionários" de investigação (sério que a narrativa retrata a análise racional da cena do crime como uma invenção engenhosa de Kant, como se todos antes dele não passassem de imbecis capazes apenas de interrogar, agredir, matar?), informações convenientes cuja procedência na investigação poderia haver se dado muito antes (sério que Koch não pensou em momento algum perguntar sobre Lutbatz não sei das quantas assim que descobriram ser uma agulha a arma do crime? Ele só lembrou que sua esposa comprava suas quinquilharias de costura com este sujeito ao acaso, lá para o começo do fim?) e assim por diante. Mas não estou com paciência para tanto, as pistas que deixo podem ser seguidas por investigadores muito mais habilidosos do que esse protagonista com tendências coléricas, incapaz de formular um pensamento racional sequer, ainda que se pretenda o baluarte da lógica, orgulhoso herdeiro do racionalismo de Immanuel Kant!... Até parece.