Andreia Santana 04/01/2024
Quem conta um clássico
Reconto do mito de Don Juan em formato de roteiro para uma peça teatral, o Don Giovanni de José Saramago traz os elementos característicos da obra do autor português e uma forte inspiração em Shakespeare, Molière e Mozart.
Revisitar uma história clássica é sempre um desafio para um autor contemporâneo, mesmo para um que já ganhou o Nobel e é um erudito de larga formação humanística. Principalmente se a ideia é subverter o personagem original, que é a proposta de Saramago ao recontar as aventuras e desventuras de Don Giovanni, um libertino ‘colecionador de mulheres’.
Ele escreveu o livro/script após ser convidado pelo compositor Azio Corghi que, por sua vez, recebeu uma encomenda da ópera scalla de Milão para criar uma nova encenação operística para Don Giovanni, que já havia sido imortalizado por Mozart em 1787.
Como o autor narra no prefácio da obra, ele finalizava Ensaio sobre a Lucidez quando Corghi o chamou para participar da empreitada. Enquanto o escritor criava o texto teatral, o compositor cuidava do libreto da ópera, de forma simultânea.
No posfácio, no artigo Gênese de um libreto, Graziella Seminara conta os bastidores da produção do livro e da nova ópera, incluindo trechos da intensa troca de correspondência entre Saramago e Corghi.
É fascinante ler sobre o processo criativo de dois grandes artistas, da palavra e da música. A colaboração dos dois, revela Seminara, não era algo inédito, pois já haviam trabalhado juntos na adaptação para uma ópera chamada Blimunda, inspirada no romance Memorial do Convento, o livro magnífico que deu a José Saramago o Nobel. Blimunda, ao lado de Mateus Sete Sóis, protagoniza a história.
A peça/ópera de Saramago e Corghi conta o encontro espantoso entre Don Giovanni e a estátua de bronze do Comendador, que representa um fidalgo que o conquistador teria matado em duelo e que morreu acreditando que a filha casta havia sido desonrada pelo sedutor. A estátua, que representa de forma metafórica a pretensa rigidez moral dos hipócritas, saiu do seu pedestal na cripta do fidalgo para amaldiçoar Don Giovanni com o fogo eterno do inferno, a menos que ele se arrependa dos excessos cometidos.
Saramago usa os diálogos entre a estátua e seu arqui-inimigo para questionar a noção de certo e errado, céu e inferno, culpa, pecado, arrependimento e redenção.
Gravitam em torno dos dois: o empregado de Don Giovanni, Leporello, que tem a guarda do livro onde o patrão anota os nomes das mais de duas mil mulheres que alega ter seduzido; Dona Elvira, uma das seduzidas; Dona Anna, a filha do Comendador; Don Octávio, o noivo de Dona Anna; Masetto, um camponês que desconfia que a esposa foi mais uma vítima do libertino; e Zerlina, a mulher de Masetto que é a responsável por ressignificar a vida até então dissoluta de Don Giovanni.
Com o humor fino e as tiradas irônicas que todo leitor de Saramago conhece bem, Don Giovanni é um livro para se devorar em poucas horas e não sem um perverso deleite com a grande tragicomédia da condição humana.
Ficha Técnica:
Don Giovanni ou O dissoluto absolvido
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras, 2005
136 páginas
R$ 43,92 (livro físico, Amazon) e R$ 19,99 (e-book Kindle) ou R$ 54,90 no site da editora
*Livro resenhado para o desafio #50livrosate50anos, uma brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até lá e, se possível, resenhar ou fazer algum breve comentário aqui no Skoob e no Instagram, sobre cada um deles. Don Giovanni foi o livro 01 do desafio.
site: https://mardehistorias.wordpress.com/