Joao.Marcelo 11/10/2020
Todo mundo tem um escritor preferido!
Para mim, Saramago é meu alter ego literário. Me identifico com tudo o que escreveu e em suas entrevistas, com tudo o que falou. A ideia de uma autobiografia da infância é simplesmente genial e me pergunto, quem também não a realiza ao menos mentalmente? Quem não guarda memórias da primeira vez que sentiu o prazer do vento em seu rosto e do cheiro da terra molhada pela chuva? E quem não guarda memória do momento em que percebeu sua própria finitude, a aspereza do mundo e das pessoas, e uma perda inestimável? Sim a infância é feita de memórias de todo tipo ...
“Foi nesses lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido consequência de um equívoco do acaso, de uma casual distracção do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar. Não foi assim. Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com os seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço de imenso oceano do ar, esse lodo ora seco, ora húmido, composto de restos vegetais e animais, de detritos de tudo e de todos, de rochas moídas, pulverizadas, de múltiplas e caleidoscópicas substâncias que passaram pela vida e à vida retornaram, tal como vêm retornando os sóis e as luas, as cheias e as secas, os frios e os calores, os ventos e as calmas, as dores e as alegrias, os seres e o nada. Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer.”
“Íamos nós no Rossio, já de regresso a casa, eu impante como se conduzisse pelos ares, atado a um cordel, o mundo inteiro, quando, de repente, ouvi que alguém se ria nas minhas costas. Olhei e vi. O balão esvaziara-se, tinha vindo a arrastá-lo pelo chão sem me dar conta, era uma coisa suja, enrugada, informe, e dois homens que vinha atrás riam-se e apontavam-me com o dedo, a mim, naquela ocasião o mais ridículo dos espécimes humanos. Nem sequer chorei. Deixei cair o cordel, agarrei-me ao braço da minha mão como se fosse uma tábua de salvação e continuei a anda. Aquela coisa suja, enrugada e informe era realmente o mundo.”
“A mãe e os filhos chegaram a Lisboa na Primavera de 1924. Nesse mesmo ano, em Dezembro, morreu o Francisco. Tinha quatro anos quando a broncopneumonia o levou. Foi enterrado na véspera de Natal. Em rigor, em rigor, penso que as chamadas falsas memórias não existem, que a diferença entre elas e as que consideramos certas e seguras se limita a uma simples questão de confiança, a confiança que em cada situação tivermos sobre essa incorrigível vaguidade a que chamamos certeza. É falsa a única memória que guardo do Francisco? Talvez o seja, mas a verdade é que já levo oitenta e três anos tendo-a por autêntica ...”