Ladyce 21/11/2018
Muito me surpreendi com a Autobiografia da Agatha Christie. Boa surpresa. Esta é uma leitura feita por uma profissional da escrita: fácil de ler, interessante, repleta de informações pessoais, culturais e sobre hábitos da época. Foram quase 600 páginas que me deixaram com gosto de quero mais. Não é qualquer um que consegue isso. Na virada de 2018 tomei decisão de ler mais livros de outros segmentos além de ficção/romance. Ando interessada em memórias. Gosto daquelas que colocam a vida do autor no contexto da época. Esta é uma delas.
Neste livro, aprendi sobre costumes da época (virada do século XIX para o XX) que são interessantes de pontuar. Hábitos e maneira de pensar eram diferentes. Uma das surpresas foi saber da existência de uma tal “carroça de banho de mar” que as mulheres na primeira década do século XX usavam. Era realmente uma carroça, com rodas, e uma tendinha de madeira em cima para a troca de roupas. Elas eram puxadas para um lugar mais fundo do mar para mulheres poderem nadar. Eu já conhecia regras que circunscreviam os banhos de mar para mulheres, mas essa foi a primeira vez que soube desses carrinhos.
Há observações sobre o comportamento das mulheres que quero ressaltar. Em 1919, Agatha Christie teve um filha. Quando Rosalind está com dois anos e pouco, em 1922, Archie Christie, seu marido, tem oportunidade de trabalhar viajando por um ano de navio, através dos países que faziam parte da Commonwealth Britânica. Agatha não se estressa. Deixa a filha com a mãe e a irmã e uma babá e vai viajar pelo mundo por um ano inteiro, por todas as colônias inglesas. Hoje, em pleno século XXI, a mesma classe média alta, pelo menos aqui no Brasil, ou até mesmo nos EUA, acharia estranha essa decisão. Como? Não ver sua única filhinha, tão pequenina por um ano inteiro? Num mundo sem SKYPE, sem Whatsap, sem internet, sem a facilidade de telefonemas internacionais?
Também é interessante notar que Agatha Christie é capaz de viajar sozinha através de muitos países. Estamos falando de viagens antes da Segunda Guerra Mundial. Sozinha. Por que? Porque quase todos os países por que passa são protetorados ingleses. As leis inglesas protegiam essa mulher, que na Inglaterra da época já tinha bastante mais liberdade do que em outros cantos do mundo. Se formos comparar com o presente, 2018, praticamente 100 anos depois das aventuras de Agatha Christie, nós mulheres, não podemos viajar sozinhas, como turistas, mala em punho, pela maioria dos países por onde ela passou no Oriente Médio. Essa é uma diferença enorme. Depois da independência desses países leis que restringem deslocamento de mulheres, baseadas no Alcorão ou em costumes locais, deixaram de dar apoio a essa liberdade feminina.
O leitor tem também a oportunidade de descobrir que Agatha gostava bastante de esportes e com seu primeiro marido, esteve entre os primeiros europeus a praticar surfe em pé na prancha, quando nesta mesma viagem de 1922/23 estiveram no Havaí. E numa época em que carros eram raros, ela já dirigia seu próprio. No fundo, o que mais me surpreendeu nesta autobiografia foi perceber como ela foi uma mulher moderna. Muito moderna. E com seu sucesso literário tomou para si o poder, o poder de decidir o que queria, de fazer o que queria, quando queria, sem dar satisfações.
É claro que para os fãs de Agatha Christie ler sua autobiografia será interessante para conhecer que ideias apareceram em seus livros como resultado da própria vivência da escritora. Curioso saber da surpresa dela com o próprio sucesso, e que, com o tempo, ela não se acanhava de fazer bom uso do dinheiro que lhe veio às mãos, comprando imóveis e remodelando-os. Quando precisava de uma renda maior, para ajudar nas obras, para colocar mais uma viagem na agenda, Agatha Christie admite, sem pudor, que se sentava à mesa, para escrever um conto ou um romance que lhe trouxesse dinheiro. Talvez seja por isso que conta mais de 80 títulos de sua autoria.
Outro aspecto que esquecemos quando falamos da Dama do Mistério é que ela também se sobressaiu na dramaturgia. São dela as duas peças de teatro de maior sucesso no mundo, no século XX. A ratoeira [The Mouse Trap], foi encenada, ininterruptamente desde 1952 até hoje. Testemunha de acusação [Witness for the prosecution] de 1953.
É difícil resenhar uma vida tão completa da escritora que mais vendeu livros no mundo, ficando em terceiro lugar, depois da Bíblia e Shakespeare. Calcula-se em 4 bilhões de exemplares. Agatha Christie teve uma vida repleta. Viveu bem e intensamente. Deixou 80 livros policiais e de contos, 19 peças de teatro e 6 romances usando o pseudônimo Mary Westmoreland. Suspeita-se que ainda haja outras obras com outra identidade.