Igor Almeida 23/06/2020
O mundo perfeito, ou não
E se fizéssemos o esforço de imaginar um mundo ideal, como ele seria? Não apenas em conceitos amplos e imprecisos, como "não haveria injustiça" ou "viveríamos em paz eterna", mas com definições claras e detalhadas de como seria cada aspecto dessa sociedade, explicando a lógica da moradia, dos empregos, dos conflitos, etc. Uma coisa é certa, quanto mais se escrever, quanto mais se detalhar o funcionamento das instituições, mais distante estará da realidade e mais se mostrará, de fato, a personalidade e as crenças de quem está escrevendo.
Neste livro não é diferente, Thomas More, em 1516, descreve detalhadamente (tão detalhado quanto 150 páginas permitem), uma sociedade chamada Utopia, em que o cerne da justiça, segundo ele, é a igualdade (de resultados) e a ausência da propriedade privada:
"Ora, a igualdade é, creio, impossível num Estado em que a posse é particular e absoluta; porque cada um se apoia em diversos títulos e direitos para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um reduzido número de indivíduos que deixam aos outros apenas indigência e miséria ...eis o que invencivelmente me persuade que o único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a esse mais numerosa e mais estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desesperos."
É fácil de entender o porquê de um homem do século XVI ser contra a propriedade privada e declaradamente contrário aos ricos em si mesmos. Quando se tem a crença que o enriquecimento unicamente se dá por meio do acúmulo de metais (roubados, tomados à força por impostos ou pelo comércio – que também era uma atividade considerada suja), que o comércio nada mais é que exploração de uma das partes e que a maneira mais justa de se viver para a maioria seria lavrando a própria terra; quando, somando-se a isso, o enriquecimento por nascimento em uma época de rígida imobilidade social, com posse de terras garantidas por título de nobreza, negócios sem concorrência real com monopólio dado aos amigos e familiares dos nobres e onde tudo era decidido por nascimento, realmente não há como julgar o pensamento de quem acredita que a única forma de justiça seria acabando com tudo para começar de novo, mantendo a propriedade comum a todos.
Ele se revela, em termos atuais, um verdadeiro planificador bem intencionado, em nome do bem comum (como todos os ditadores o são), imponto aos outros o que ele considera justo. Se é justo para ele, decerto é justo para todos, não há erro (De fato, não nascemos sabendo viver em liberdade, é preciso aprender a respeitar opiniões contrárias e esse conceito é relativamente novo.). E assim se enumera as regras sociais: como não há propriedade, as moradias seriam decididas por sorteios a cada 10 anos, ou seja, nova casa a cada 10 anos, não importa o local que se deseje morar. Todo mundo deve ser agricultor porque todos precisam comer, somente após algum tempo poderia haver escolha de profissões distintas (se houver vaga disponível). E lá se perde a produtividade gerada pela divisão do trabalho. Ele parte do pressuposto que o crime é originado da miséria e que, possuindo todos as mesmas propriedades, não haveria motivo para crime. O autor ignora completamente a natureza humana...
Ademais, há número máximo de filhos. Quem ultrapassar esse número terá a criança tomada da família pelo estado. Se a população crescer, haveria emigração forçada para formar uma nova nação em outras terras (E quando povoarem tudo? Seguindo o raciocínio, tenho é medo da solução que podem propor...). Num ímpeto utilitarista, acredita que 6 horas de trabalho diário seria suficiente para todos, afinal não haveria profissão “inútil” e todos trabalhariam no que é importante, sem nenhum tipo de luxo (ele usa o exemplo dos ourives como símbolo da inutilidade). Esse merece um comentário à parte. Me pergunto, quem definiria o que é luxo? O luxo de alguns é realmente danoso para os demais? Há 100 anos, ter um carro era puro luxo. Um carro era caro, menos funcional que um cavalo e só rodava dentro das grandes propriedades com estradas preparadas, ou seja, era um brinquedo, uma extravagância dos ricos. No entanto, foi essa extravagância que financiou a indústria automobilística nascente e permitiu que se desenvolvesse ao nível que temos hoje. Da mesma forma, talheres e ter banheiro em casa também já foram considerados luxo. O que seria de nós se houvesse, em cada época, justiceiros sociais definindo o que os outros devem fazer ou não em nome do bem comum...
E segue no devaneio: "Na Utopia, as leis são poucos numerosas; a administração distribui indistintamente seus benefícios por todas as classes de cidadãos. O mérito é ali recompensado; e, ao mesmo tempo, a riqueza nacional é tão igualmente repartida que cada um goza de todas as comodidades da vida".
De início, soa bonito, mas só de início. É um trecho autorrefutado. As leis são pouco numerosas? O autor passa o livro inteiro mostrando de que maneira o príncipe faria isso ou aquilo, com infindáveis regras do que é permitido e o que é proibido, e fala em leis pouco numerosas? Mérito recompensado e riqueza igualmente repartida? Se é igualmente repartida, não há critério de recompensa nenhum, já que os mais merecedores e os menos recebem igualmente a produção. Afinal, quem decide quem é merecedor? Como não existe igualdade de capacidade e houve igualdade de distribuição, há injustiça intrínseca ao modelo. Esse sistema gera estímulo ou inibição para aqueles que fizeram a maior parte da produção? O que se tem em longo prazo? A última frase: todos vão gozar das comodidades da vida? Se não levarmos em conta um sistema que estimule e permita produtividade e aumento na geração de renda, sistema esse garantido pela propriedade privada, que tipo de gozo da vida haverá em distribuir renda nenhuma?
Neste livro, cada parágrafo é um "eita atrás de eita", compreensível para a época que foi escrito e com certeza vale a leitura. É uma ótima história, geradora de assunto pra muita conversa, mas direcionei os comentários para o fato dessas ideias terem sido postas em prática (tentadas) várias vezes desde então e serem idolatradas ainda hoje. Não é à toa que esta obra é considerada a precursora do socialismo, as bases ideológicas são as mesmas: controle estatal sobre o indivíduo em nome do paraíso futuro da igualdade.