legarcia 24/05/2024
A morte em vida (e o renascer)
?Morte e morte de Quincas Berro D?água foi minha primeira leitura de Jorge Amado. Penso que para quem só houve falar do autor, podem ainda possuir certa resistência pelas polêmicas e críticas sofridas pelos seus textos, sobretudo de sua dita primeira fase. Talvez por compartilhar de uma impressão equivocada, essa novela foi uma bela surpesa desde os primeiros parágrafos lidos.
Com um tom de ironia e com um ótimo humor, o narrador apresenta-nos a história da história da morte desse que era Quincas Berro D?água, mas que já foi também Joaquim. Em uma primeira análise, percebe-se que antes da morte física, o personagem havia sofrido uma morte social. Havia, na verdade, morrido para uma parte da sociedade, aquela de etiquetas, que representa a normalidade, e renascido para outra, que era a vida da marginalidade.
Logo somos inseridos em um embate provocado pela morte do personagem: a tentativa da família de reestabelecer a ordem que foi subjugada pelo próprio Quincas quando resolveu abandonar a vida normativa e a tentativa dos amigos de manutenção da transgressão. Essas discordâncias são evidentes quando pensamos no foco das preocupações dos dois grupos. O olhar da família está sempre em preocupações mesquinhas, nas aparâncias. Já a natureza das preocupações dos amigos é mais profunda, pensando em honrar Quincas e aproveitar ao lado de quem era quase um pai para eles.
Cabe nessa novela, uma segunda camada de interpretação a qual quando me deparei achei muito interessante e pertinente: a relação (ou oposição) da jornada de Quincas com o próprio Cristo. É inegável as diversas referências a história de Jesus, como a refeição compartilhada pelos amigos após a morte do personagem, o papel de um pai quase religioso de Quincas para aqueles marginalizados, a maneira como os amigos dele agem como seus discípulos, carregando-o para todos os lugares.
Apesar de todas as reflexões que podemos extrair da obra, a que está mais forte em mim é em como a vida que Quincas abandonou realmente é imposta em todos nós. Vivemos em sociedade, e cada papel que representamos, seja profissional, de filho, de mãe, de cidadão, impõe em nós certas resposabilidades e pressões. Creio que, em meio a diversos deveres que vêm de fora, é impressindível que questionemos o que em nossa vida vêm de dentro pra fora. Sabemos que a vida não pode ser uma mera representação de nós no mundo, mas precisamos exprressarmo-nos na realidade, não abandonando aquilo que é essencial em nós.
Por fim, a novela é escrita por um autor que já alcançou certa maturidade e é de grande qualidade. Ao mesmo tempo que propicia reflexões acerca de dores humanas e questões profundas, a obra é narrada com um humor que traz leveza e que me tirou algumas risadas. É uma leitura realmente muito gostosa, com certeza recomendo!