Pablo Paz 22/10/2021
Tenho corpo, logo existo...
O filósofo F. Nietzsche (1844-1900) dizia que a filosofia ocidental (e a literatura em geral) devia pensar o Corpo. Esse conselho soaria estranho a um autor japonês como Kenzaburo Oe (1939-), aliás, uma das influências de Murakami.
Vai uma citação da obra: "Não há nada realmente importante neste mundo, nenhuma aflição, nada digno de angústia. Ponham-se então na pele daqueles que, sabendo disso, tudo têm de suportar em silêncio e continuar a viver, daqueles que têm de viver exultantes aturando estoicamente esta amargura que vocês, que ora correm rumo ao inferno, não conseguiram afinal suportar!"
Seus contos em geral não agradam a muitos leitores ocidentais exatamente por isso: ele PENSA e trata do corpo, como é comum na literatura japonesa, de forma muito natural, em especial da decadência física (doenças, abortos, rugas, sangue, impotência masculina, envelhecimento feminino...). Tão natural que, quando ele fala sobre aborto, masoquismo ou faz analogias como "cerveja tem essência de xixi" leitores cultos ocidentais tendem a ficar corados ou achar que se trata de mau-gosto, julgando o livro com frases como "o autor é bom, mas não gostei de todos os contos". Por trás desse tipo de opinião inteligente o que realmente dão é uma opinião puritana, tendo sobre o Corpo (e toda a sua decadência) um olhar moral que os japoneses, em geral, não costumam ter.
Ele trata de muitos temas mas, para mim, o que atravessa esses contos é esse "pensar o corpo" por meio de personagens tanto estoicos quanto hedonistas, porém sempre de modo holístico, personagens que gritam: "Meu corpo está em decadência, oh então estou vivo". Em suma "Tenho corpo, logo existo!". Algo que os escritores ocidentais, do centro ou da periferia, ainda têm muita dificuldade em naturalizar, e devido não só a nossa moralidade judaico-cristã que separa corpo (mau) e alma (boa), como também ao predomínio do Logos no mundo moderno, o "Penso, logo existo" do genial Descartes. É claro que há autores ocidentais que tentaram romper com tal dualismo, mas chocaram tanto que até demos, melhor classificamo-los, um nome para eles: autores malditos (Sade, Sacher-Masoch, Georges Bataille, Henry Miller, Anais Nin, Pier P. Pasolini e, no brasil, Cassandra Rios). O olho torto da crítica acadêmica para os livros de literatura erótica lidos por mulheres trabalhadoras não é só de 'falta de qualidade' ou de 'bom gosto' etc.; também tem a ver com esse puritanismo. (Por ex., nunca vi nada tão preconceituoso quanto classificar uma autora/obra de 'soft porn'. Ou é pornográfico ou não é, ahahah)
Se você quiser saber se é puritano, leia autores japoneses como Kenzaburo Oe. Se achar que 'o autor é bom, só que sei lá, não me agradou muito' é porque tu és bem puritano, mas o politicamente correto ou a caretice talvez te impeçam de dizer às claras. Esta coletânea, ainda que subjetiva em suas escolhas, é alta literatura e faz jus ao Nobel ganho em 1994.