Caronte, dono da conceituada funerária Estige, vive atormentado pela mãe desde sempre - deve até seu nome (na mitologia grega, Caronte é o barqueiro que leva almas pelo rio Estige, fazendo a travessia entre o mundo dos vivos e dos mortos) ao humor discutível de Odília. Seu pai sempre vivera sob o domínio autoritário da mulher, e, por conta disso, ao completar 50 anos, suicida-se, deixando a funerária para Caronte.
Caronte nunca quis tomar parte nos negócios familiares - apaixonado pela música clássica (aprendeu a tocar piano de ouvido), queria ser maestro. Sua mãe, é claro, proibiu. Ela, que era gorda, também proibia o filho de comer doces e controlava sua alimentação, com receio de que ele ficasse como ela. Caronte a odiava.
Então, decidiu matá-la.
"A morte de Odília foi considerada acidental. Na verdade, o “acidente” havia sido provocado por um empurrão do filho. O corpo fora encontrado no chão liso da cozinha como se ela tivesse escorregado e batido com a base do crânio na quina do forno, quando preparava um imenso Pudim Abade de Priscos. Antes de chamar a polícia, Caronte debruçou-se sobre o fogão e sorveu avidamente a calda caramelada do pudim mesclada ao sangue da mãe. Um espasmo sacudiu todo o seu corpo e a nódoa escura que se alargava na frente das suas calças revelava o fruto de um orgasmo incontrolável."
Porém, isso não aplaca sua angústia. Desde então, Caronte passa a assassinar mulheres gordas, esganadas por comida, esganadas com comida.
Sim, já no início do livro, o autor dos crimes, bem como seu método, é revelado, restando o suspense sobre se/como será feita sua captura. Então, são introduzidos os personagens que comandam a investigação: um delegado mau-humorado, seu medroso e simplório assistente e o detetive português "Esteves sem metafísica" (do poema Tabacaria, de Álvaro de Campos - heterônimo de Fernando Pessoa).
Pessoas que realmente existiram, como o próprio Fernando Pessoa, estão presentes na obra, mas não de forma acentuada, sendo levemente incluídas (a maior parte é apenas citada).
Jô Soares, ainda, tenta dar uma ambientação mais histórica (a narrativa se passa no Rio de Janeiro de 1938, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas), incluindo, por exemplo, notícias de rádio - mas não convence muito.
"As Esganadas" conta também com citações eruditas, passagens em outros idiomas sem tradução e alguns vocábulos não muito comuns (que não são de fácil compreensão para o leitor não habituado - como comprovado por um dos próprios personagens, que muitas vezes é ridicularizado por isso). Fica a sensação de que o autor tenta se usar desses elementos para conferir, forçadamente, intelectualidade a sua obra.
Em se tratando de um livro de um humorista conceituado, espera-se que existam passagens divertidas, porém, não existem trechos notadamente engraçados. Esclarecendo: a intenção de provocar risadas existe, mas não chega a divertir e conta com tiradas prontas - a clássica piada de português, previsivelmente (já que um dos principais personagens é português), está presente.
Quanto à trama, poderia ser mais bem explorada. Não se sente todo o drama de Caronte, não justificando suas ações extremas. Certo, aqui você pode dizer que não se justificam as ações de um psicopata, mas, neste caso, o próprio autor deixa claro que Caronte é movido única e exclusivamente em busca de vingar-se da mãe. Ora, por que ele opta pelo assassínio? Não fica claro o momento exato que Caronte mata sua mãe, apenas que foi depois da morte do pai, mas presume-se que ele já não era mais uma criança, por que, então, não simplesmente deixou tudo e foi em busca de seu sonho (excelente músico que era - ao ponto de ser perfeitamente capaz de ingressar em uma orquestra)? E, depois que o fez, por que prosseguir? Finalmente estava livre da tirania materna, ninguém suspeitava dele e tinha dinheiro suficiente para fazer o que bem entendesse de sua vida. Simplesmente não me parece coerente.
A "genialidade" de Caronte ao assassinar mulheres gordas entupindo-as de comida foi uma boa sacada. Só que não é novidade. É inevitável não associar seu método ao filme "Seven - os sete pecados capitais". Na abertura do filme em questão, vê-se o psicopata arrancar a pele dos dedos para retirar suas impressões digitais e não deixá-las na cena do crime. No primeiro crime, um homem extremamente gordo é amarrado e obrigado a comer até a morte. Certo, você pode dizer de novo, mas todo mundo recebe "influências" de outras coisas para escrever. Tudo bem então. Até aí, sem problemas, se o fato fosse bem aproveitado no livro.
Enfim, "As Esganadas" é uma história simples com ares de intelectual, que não cativa, não diverte, e nem consegue entreter.
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