Andrezinn 09/09/2022
O Brasil é mágico, basta você querer ver a magia nele
Em "A Arma Escarlate", livro da maravilhosa bruxinha brasileira Renata Ventura, acompanhamos as aventuras e desventuras de Idá Aláàfin Abiodun de Oyó, ou como ele prefere se chamar, Hugo Escarlate. Idá, um menino de 13 anos, morador da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, se descobre bruxo durante um tiroteio entre os chefes do tráfico e da polícia e acaba sendo jurado de morte por um desses chefes que ameaça sua família. Com o objetivo de aprender magia e se tornar poderoso para enfrentar esse chefe, ele embarca nesse nosso Brasil Mágico e se surpreende com toda a fantasia que cerca o país.
Hugo não é como qualquer outro protagonista de uma fantasia de bruxos. Ele é impulsivo, inconsequente, levado, ambicioso, insensato, imprudente e tem uma moral questionável. E isso só o torna mais humano, mais realista. Nosso protagonista está mais para um anti-herói do que um herói; e a Renata não economiza palavras para deixar isso bem claro. Ao desenrolar das suas ações, tanto boas quanto ruins, adentramos cada vez mais o mundo bruxo brasileiro e desvendamos a magia brasileira.
Aqui, entra uma das minhas partes favoritas em toda a ambientação que Renata fez: A história do Brasil está completamente ligada a história da magia que nele se faz presente, e essa praticamente fundamenta a outra; as duas histórias sempre caminharam juntas e se intercruzam a décadas. Quem pensaria que os bruxos estavam presentes desde a colonização das terras tupiniquins? Ou quem teria a audácia de dizer que Maria I, a Louca, era uma bruxa? Só a Renata mesmo para nos surpreender com essas "revelações". O jeito que ela pega lacunas de nossa própria história, as preenche e molda, literalmente, com magia, é indubitavelmente majestoso. Esse livro me fez admirar ainda mais a história de nosso país tupiniquim.
Mas se você acha que ela só brincou com nossa história, está ligeiramente enganado. A cultura brasileira é uma das muitas engrenagens presentes nesse universo mágico. Se outros livros brincam com a mitologia deles, por que não brincar com a nossa? Afinal, o folclore brasileiro apresenta muita magia. Curupira, Mula sem cabeça, Saci, Cuca e outros personagens de nosso folclore fazem parte do Brasil Mágico. Mas não se engane, você não encontrará eles de mãos dadas dançando ciranda, nem eles como bons companheiros do homem. Não, eles se apresentam como foram criados: Monstros fantásticos que espalham medo e terror por todos. Também temos a questão dos feitiços só poderem ser realizados em Tupi, já que o Latim é ineficaz nos trópicos. Uma baita jogada para que a herança étnico-linguististica, oriunda dos povos indígenas, fosse mais difundida.
Mas voltando ao enredo, Hugo vai estudar em uma das 5 escolas de magia brasileiras. Isso mesmo, temos cinco escolas, uma escola em cada região, já que o imenso território e população não toleraria apenas uma escola. O Norte contempla a escola Boiuna, onde os estudantes são conhecidos como Curumins; o Nordeste é lar dos Caramurus, que habitam a Cidade Média; do Centro-Oeste vem os Candangos (de uma escola até então pouco abordada); no Sudeste temos a esplêndida escola de magia Notre Dame do Korkovado, ou Nossa senhora do Corcovado, como os alunos preferem chamar, de onde vem os Corcundas; e no Sul, os Cupinchas estudam na escola de magia Tordesilhas. Como morava no Rio, Hugo vai para a Nossa Senhora do Korkovado, que como o nome já sugere, se localiza dentro do morro Corcovado, embaixo da estátua do Cristo Redentor, sustentado por uma árvore gigantesca. Lá, Hugo aprende não só sobre magia, mas também sobre como ser humano. Sua motivação pessoal de vingança entra em conflito diversas vezes contra a dura vontade de melhorar e de abandonar o seu passado. Amparado por bons amigos ele tenta ser melhor, mas faz um desvio gigantesco que abala toda a escola.
Aqui, devo relatar e explicar que: "A Arma Escarlate" não é um livro infantil. Está mais para o público jovem (+14), devido aos inúmeros temas tratados nas páginas. Drogas, abandono familiar, violência policial, suicídio, vício e relações abusivas se fazem presentes no livro, constituindo as tramas principal e secundárias. Então, apesar de haver uma exploração "mais inocente" em todo o descobrimento da magia e do fantástico mundo excluído dos olhares comuns, por tratar temas sérios (não ao acaso, mas sim, por estarem seriamente incluídos na realidade brasileira), os limites pessoais de cada um devem ser respeitados.
Todo o enredo ronda essa busca pelo poder do Hugo, seu deslumbramento do mundo mágico, as relações que ele cria e uma premonição que uma das professoras teve no início do ano. Cada página lida só aumentava a ansiedade, cada revelação só aumentava a curiosidade, até que veio o plot-twist. E foi muito melhor do que eu esperava. Infelizmente não dá pra falar sem spoilers, então só quem leu sabe do que estou falando. Mas para quem não leu, leia. O plot de deixará de cabelo em pé.
Quanto aos personagens apresentados na escola, sejam alunos, membros do conselho, professores ou a queridinha diretora Zô, são incrivelmente desenvolvidos e cativantes, com relações muito bem estruturadas. Os Pixies são os melhores! Capí,Viny, Caimana e Virgílio são tão perfeitos (bem, pelo menos o Capí é. Agora o Viny?). Todo o discurso deles contra a europeização das escolas de magia brasileira, deixando que as escolas aceitem o legado brasileiro e se adaptem ao próprio país, de promover uma visão menos estereotipada dos Azêmolas/Mequetrefes (apelido dos não-bruxos) para os bruxos que são muitas vezes conservadores e que os vêem com olhos maus, e sobre a busca por conhecimento derivar do próprio aluno, dão um tapa na cara não só no leitor como na sociedade bruxa brasileira do livro. E pensar que eles são só alunos. Contra os Pixies, na mesma escola, temos alguns alunos que se chamam de Anjos, que são totalmente conservadores e a favor da europeização das escolas de magia, já que, segundo eles, o Brasil é uma bagunça que poderia ser resolvida apenas se seguirmos os moldes europeus de civilização. E apesar dos Anjos serem "antagônicos" e uns cretinos, eles também não ficam para trás em desenvolvimento.
"A Arma Escarlate" é um livro que fala sobre a aceitação de quem nós somos, nossa profunda, intensa e interna luta moral entre o bem e o mal, o controle de nossos impulsos, o perigo do orgulho, a capacidade humana de mudar e sobre a aceitação de nosso legado linguístico, social e cultural. Por meio das críticas traçadas sobre a sociedade brasileira, sobre nosso convívio e nosso pensamento de que bom é o que vem de fora, Renata nos dá aulas sobre como devemos ser enquanto brasileiros.
Renata Ventura conseguiu nos introduzir no outro Brasil, com maestria; fazendo com que o fascínio pelo mundo bruxo brasileiro só crescesse com o desenrolar das páginas. É uma obra genuinamente brasileira, que nos traz contextos sociais duros mais reais, que nos faz amar e odiar o mesmo personagem de um jeito que só a Renata mesmo consegue fazer. Aceitemos ser brasileiros, pois isso é o que somos. Quando nós aceitarmos, estaremos abertos a inúmeros pensamentos, inclusive o de que vivemos rodeados de magia, num País Mágico.
"O poder cega as pessoas, Idá. Sempre cegou. Quanto mais poder se tem, maior é a queda."
"A escola abrirá suas portas para um grande mal. Um mal de terríveis proporções. E o filho será a danação da mãe. A escola, que acolhe todos os eleitos, se destruirá por dentro. É Pandora que vem, terrível e traiçoeira, abrir sua caixa de males."
"Num é o sangue qui faz o Rei, piquenu Obá."
"Todo mundo de vez em quando cede a uma tentação. O que diferencia as pessoas é o que elas fazem quando percebem que estão fazendo mal as outras."
"A magia é um dom sim, e com ela vem muita responsabilidade. A questão é: o que você faz com o que lhe é dado?"