Coruja 24/01/2011Ano passado, no Clube do Livro, decidimos que em 2011 faríamos uma volta ao mundo literária: além de temas mais corriqueiros e fáceis de mastigar, íamos dedicar alguns meses para encontrar livros de cada continente do planeta, ler e debater.
Nossa viagem começou agora em janeiro com a África, o berço da humanidade. Foi assim um tanto complicado decidirmos o título do mês, porque ninguém do grupo realmente conhecia autores africanos, de forma que pesquisamos e indicamos livros só pela sinopse, sem conhecer muito mais da obra.
O livro mais votado acabou sendo o que eu indiquei, O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa. O engraçado é que só fui perceber que esse livro estava na minha lista de futuras leituras quando fui pesquisar as capas do livro para poder publicar com esse post.
Vejam só... eu conheci Agualusa. Ele foi o mediador da palestra de Alberto Manguel na Fliporto, em novembro. Durante a palestra, que tratava sobre identidade e literatura, Manguel citou o livro do Agualusa, mas pelo título em inglês, O Livro dos Camaleões. O que eles conversaram foi o suficiente para despertar minha curiosidade e anotei o título para futura referência.
Aí, pesquisando as capas no google, deparei-me com uma foto do Agualusa e pensei comigo mesma que ele era muito familiar, mas não sabia determinar o porquê dessa familiaridade. Estava resmungando comigo mesma sobre a capa brasileira, totalmente sem graça em comparação a de outros países, quando vi a capa da edição americana.
Foi quando minha memória decidiu dar as caras e eu me toquei de onde é que conhecia Agualusa e que também conhecia algo do livro. Claro que isso só aconteceu depois de ter terminado de ler, de modo que não me adiantou muito a dica.
Devo ter ficado pelo menos meia hora tentando descobrir o que era uma osga, quando finalmente me lembrei (memória não anda muito boa, né?) de que Angola (Agualusa é angolano) fora colônia portuguesa, a língua falada lá era português de Portugal, e eu não ia encontrar 'osga' num minidicionário escolar (o Aurélio está enterrado com um monte de livro em cima e eu não estava a fim de fazer bagunça na estante...).
E também, a edição brasileira não tem uma lagartixa na capa, de forma que eu realmente não tinha como adivinhar. Assim, fui para o Google, e afinal dei de cara com Eulálio.
Posso dizer que gostei ainda mais da história depois que descobri que o narrador era uma lagartixa super-desenvolvida dada a arroubos filosóficos que fora humano (ou sonhava que fora humano) numa encarnação anterior?
Sinceramente, eu não me lembro quando foi a última vez que li um livro tão deliciosamente bizarro quanto este. Alguma coisa no estilo do Agualusa me lembra o Gabriel García, e em especial, o Cristovam Buarque, em A Ressurreição do General Sanchez - acho que pelo enredo absurdo, aquela linguagem do realismo fantástico típico da América Latina, que ganha forma em meio a uma situação política bem específica. A diferença é que a situação absurda de O Vendedor de Passados vem mais da escolha do narrador do que exatamente das situações - coincidências ou não - que surgem ao longo da história.
Basta lembrar do episódio do presidente hondurenho deposto de pijamas ou do novo imposto criado este mês na Romênia especialmente para bruxas - entre tantas outras situações que cercam o mundo político e que parecem anedotas, mas são completamente reais. E, se podemos ter hoje ditaduras travestidas de democracia, porque a idéia de um sósia, escolhido pela União Soviética, substituindo o presidente de uma nação africana no período da Guerra Fria seria menos crível?
Fora isso, um país tentando se reerguer após um conflito que praticamente solapou todas as suas instituições me parece o lugar perfeito para a profissão de Félix, o vendedor de passados - que se apresenta como genealogista, mas que na verdade cria para quem possa pagar um inteiro e respeitável passado. São seus membros da elite, do governo, pessoas que gostariam de ter um avô famoso, um pai homem público, uma mãe filha de portugueses ainda à época da Colônia.
É interessante, aliás, compreender um pouco da história angolana para entender o livro, porque há muitos trechos e observações feitas ao longo da história que se remetem a fatos reais. Ângela, por exemplo, nasceu em 77, "era um fruto dos anos difíceis" - em 1977, Nito Alves deu um golpe de estado que acabou num banho de sangue. O Ministro da Panificação voltou ao país em 92, ao fim da guerra civil, quando ocorreram as primeiras eleições democráticas do país.
Angola viveu um período bastante turbulento testemunhado pelos personagens do livro: entre 1961 e 1974, esteve em guerra com Portugal pela independência, e quando esta terminou, seguiu-se um período de vinte e sete anos de guerra civil, financiada e observada de perto por EUA e URSS, com uma carnificina de cerca de quinhentas mil mortes e um país com todas as suas instituições em frangalhos.
Luanda é assim uma cidade de loucos que perambulam por ruas em escombros, como Félix observa; uma cidade e um país à procura de uma identidade - e é talvez por isso que os negócios de Félix prosperam tanto.
A história é toda uma constante construção e desconstrução de identidades; mentiras que repetidas mil vezes se tornam verdades. O título em inglês faz assim muito sentido, nesse ponto de vista: todos os personagens que formam o núcleo narrativo - Angêla, José Buchmann, Edmundo, Félix e o próprio Eulálio - são camaleões, permanentemente se adaptando, transformando-se naquilo que precisam ser.
São as mentiras que fazem a literatura, como disse o 'autor da diáspora' que Félix foi assistir, e ele também, confessa a Eulálio, ele também é um escritor e um mentiroso. O tempo todo estivera 'praticando literatura' sem o saber. Ele se apresenta como genealogista, mas é na verdade um fabricante de sonhos.
Não é à toa que Félix é albino... na África existe a crença de que albinos são feiticeiros - e não é um feiticeiro um homem capaz de vender passados, de "fazer sonhos", como ele diz em suas próprias palavras? O que me surpreende é a placidez com que ele vive, especialmente a se considerar que os albinos são extremamente hostilizados na África, sendo perseguidos, agredidos, linchados.
Aliás, é até engraçada a coincidência: quando já terminava de ler o livro, estava passando no Globo Esporte (acho que era o Globo Esporte - meu pai estava assistindo no quarto dele e eu ouvi do meu quarto) uma matéria sobre um time de futebol de albinos em algum país africano como forma de tentar frear esse preconceito.
Félix, ao contrário, é respeitado, visto mesmo até como um refúgio para o nosso Louco, que não é tão louco, Edmundo. Ou talvez, não ele em si, mas a identidade de uma mesma língua, do pertencer a uma mesma tribo, de terem ambos sido alunos do professor Gaspar - e lá temos o tema da identidade de novo, que permeia a obra inteira...
Foi uma leitura interessante - e surpreendente (eu não esperava nem de longe aquele final). Não sei dizer o que eu esperava do livro desse mês, da literatura africana - mas posso afirmar que gostei do que vi. Estou com Mia Couto na lista de próximas leituras e verei depois se me aventuro um pouco mais nesse território inexplorado.
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)