debora-leao 20/04/2024
Um respiro gelado na alma que faz os olhos lacrimejarem.
Uma lindeza de livro. Já aviso que a emoção me tolherá as palavras nese texto.
Nunca imaginei que ler um fluxo de consciência pudesse ser tão fácil e exigir tão pouco. Em geral, este tipo de escrita mobiliza muito minha atenção, e concentro sua leitura em momentos específicos do meu dia e da minha noite, mas este eu me peguei lendo a todo momento disponível. Ao contar a escolha e forma de vida de Rosalina, Autran Dourado traz uma narrativa constituída nos silêncios, nos espaços pequenos de memórias, de observações, de ratificações de decisões impossíveis (para nós) e também as únicas possíveis (para ela).
Li em algum lugar (do qual não me recordo) que esta obra era uma recriação do mito de Antígona. Eu, que nunca o li (ainda que o conheça), sinto-me motivada (e convencida) para lê-lo, agora. Agora, eu, que tenho tanta dificuldade de imaginar coisas tão idiossincráticas à cada época, em vez de encontrar restos de dilemas gregos hoje já secularizados, espero encontrar ecos de dúvidas da moralidade humana, ou mesmo ecos dos nossos protestos de amor. Por causa de "Ópera dos Mortos", espero encontrar reflexão sobre nossas formas de significação e(m) luto - que fundamentalmente representa, claro, nossa guerra aberta à mortalidade e à ausência de sentido que esta confere, por sua vez, à vida.
Encantei-me com o regionalismo da obra, que me parecia estranho no início, deslocado pois não sou mineira. Mas é o tipo de obra que você quase "ouve" - sente-se o sotaque, e ao longo dos dias sente falta de alguém no seu cotidiano que lhe fale assim. Que lhe fale com calma, mas conte sobre o profundo da vida. Eu me senti muito mais próxima da obra pela sua linguagem, um Saramago leve, doce, quase em tom de confidência mesmo.
Juca Passarinho me encantou também, ainda que duvide um pouco de seu caráter. Não resisti: seus pensamentos são alegres, solares, cheios de energia pela vida, mas contém reflexões importantes, dentro do que é possível para alguém que é como Juca. Ele nos mostra que é possível passar pela vida e vê-la, verdadeiramente, em suas pequenezas tão absurdamente vastas, mesmo sem a lente dos livros, da pena, do papel, dos auditórios e da Academia. Além disso, Juca (ou José Feliciano) vive em todas as dimensões temporais, em passado, em presente e no futuro, trazendo um ótimo alívio para o passado constante, sufocante e solitário de Rosalina.
Achei, também, ser um livro muito visual. A partir da descrição inicial do sobrado, VI tudo que aconteceu, dentro dos detalhes necessários. Rosalina tinha seu rosto borrado, exceto em algumas das noites, para mim... às vezes, também durante seus bordados. Via que para mim a casa era repleta de madeira, o jardim era abafado e repleto de sombras para descansar, com flores vermelhas e amarelas, rasteiras, e apenas uma árvore no fundo... Se ela existisse, com tanta aura mágica, eu diria que gostaria muito, se não de ter estado lá muito tempo, de ter visto essa casa ao menos uma vez na vida.
Não tenho certeza, contudo, se entendi o final desta leitura. Autran nos apresenta... Uma nesga de futuro? Qual futuro? Após tantas tristezas idiossincráticas? De fato, termino o livro pensando em futuro, após tanto mas tanto de passado! Não, de fato, não sei se entendo o final. Mas, também, não acho ser preciso. Parece-me que amarrar o livro lembrando da história concreta em vez da vida que acontece dentro de nossa mente é uma decisão fantástica que nos diz para voltar à vida real, que diz que há, sim, uma vida real, mas que o que foi contado também poderia ter sido uma vida comum...
"Ópera dos Mortos" tornou-se um favorito meu que guardarei com muito carinho. Não tenho como recomendar o suficiente. É um respiro de ar gelado que banha a alma, invadindo-a, refrescando-a. Certamente estará no pódio das leituras de 2024. Eu não tenho como recomendá-la o suficiente.