Emme, o Fernando 27/06/2018O essencial para entender o Egipto dinásticoO grande mérito desse livro é explicar a leigos todo o percurso do Egito dinástico durante literalmente 3.000 anos de história, sem cair em banalizações nem tecnicismos.
Johnson não tenta nos mostrar apenas a história dos grandes Faraós e seus feitos, mas se esforça bastante para que compreendamos como os antigos egípcios pensavam sua própria cultura. Há um passeio muito interessante pelos textos que os antigos nos legaram.
Um ponto ressaltado por todo o livro é o quanto a cultura do Egito dinástico influenciou direta ou indiretamente a cultura ocidental, notadamente a influência dos textos, dos mitos e da religião sobre os judeus no período em que escreviam a bíblia e posteriormente os cristãos e as várias seitas esotéricas do sincretismo helenístico.
O autor nos mostra como os egípcios eram obcecados pela ordem, pela estabilidade (Maat): "Feiura, selvageria e obscenidade...Excessos românticos ou barrocos de qualquer tipo são implacavelmente excluídos."..."quebrar o cânone artístico, infringir a lei faraônica ou pecar contra D´us eram atividades similares...todas uma negação de Maat."
Não saberia julgar que informações apresentadas são ou não controversas, mas foi bastante gratificante percorrer a história desse povo com a ajuda de um guia que tenta o tempo inteiro se colocar no lugar das pessoas, ao invés de analisá-las como objetos de estudo.
Nesse sentido são analisados vários detalhes da cultura: no Antigo Império, o Faraó era tido como a única individualidade do reino, a salvação de todos dependia da salvação dele, a reencarnação de todos dependia da dele. Apenas ele era julgado. As grandes pirâmides de Gizé não possuíam muros de proteção, nem o palácio do faraó, pois qualquer agressão a sua pessoa, sua imagem e seu nome era simplesmente impensável no Antigo Império.
No fim desse período e início do primeiro período intermediário (a primeira idade média da humanidade), as pessoas começam a tomar conta de sua individualidade a partir da decadência do poder imperial: o Egito se torna um caos, o feudalismo reina, o individualismo cresce e os saques às tumbas se iniciam, dando origem inclusive a saqueadores hereditários que se perpetuarão até os idos da redescoberta no século XIX e XX.
Os palácios ganharam muros e proteção. Vários reis foram assassinados ou morreram em condições não esclarecidas no Médio e Novo Impérios.
Carne de peixe e de porco eram vistas como impuras, mas apenas o sacerdócio e a realeza seguiam uma dieta tão restrita (costume que deu origem as proibições dietéticas da bíblia). A maior parte da população comia esses alimentos.
O banho e a TOTAL ausência de cheiros "naturais" era tido como de importância não só sanitária, mas religiosa. Qualquer mal cheiro ou odor desagradável estava ligado a forças espirituais malévolas. Talvez daí venha a real origem da circuncisão (outro de tantos hábitos transmitidos aos judeus).
A descendência era matrilinear e as mulheres possuíam uma liberdade invejável até para a realidade da Europa no século XIX.
Não havia, segundo o autor, o conceito de virgindade, o de filho legítimo (sociedade matrilinear) e nem casamento formal (com cerimônia).
Aqui o autor traz uma informação que me parece inverídica consultando outras fontes: "Uma esposa infiel podia ser queimada viva com seu amante, e ambos terem suas cinzas lançadas ao Nilo - uma punição horrível para os egípcios, pois seria determinante por toda a eternidade."
Outras fontes citam a história de Paneb, rapace com um "apetite sexual insaciável" que teria, ao assaltar um harém, deitado com a esposa principal e a filha dela. O caso teria sido levado à justiça, mas, supostamente, de tão irrelevante, ninguém foi punido, já que nada teria sido de facto roubado.
Mais interessante é conhecer a história de Set e Hórus e saber que também não havia o conceito de homossexualidade (em outras fontes ficamos a saber que Ramsés II masturbava-se todos os anos no Nilo para fecundar o rio e que possivelmente os egípcios mantinham relações sexuais em público e diante das crianças).
Uma parte da obra que pareceu-me particularmente impactante foi a que trata das causas do declínio egípcio. Entre elas: a corrupção: "um papiro entre a Vigésima e Trigésima (dinastias) revela transações monstruosamente desonestas no Templo de Khnum, na Primeira Catarata; cerca de 90% dos grãos despachados das propriedades do templo no delta simplesmente desapareciam em seus depósitos particulares."... "a greve dos trabalhadores de elite da necrópole régia, ocasionada pela falta de pagamentos, sugere a existência de uma corrupção crônica e endêmica dentro da própria administração: o pagamento simplesmente não chegava aos trabalhadores."
A burocracia e a corrupção foram fatores que determinaram o declínio do povo egípcio (só devemos tomar o cuidado de não confundir o sintoma com as causas...).
Uma discussão que acabou ficando clara para mim foi a de como os egípcios viam a si mesmos. Em um texto da décima séptima dinastia, Uadjkheperre Kamés discute com seu conselho de nobres:
"Deixem saber para que serve essa minha força! Um governante em Avaris e outro em Cush, e eu, igualado a um asiático e a um negro. Cada um deles tem um pedaço de nosso Egito, dividindo-o comigo ..."
Diante de certas polêmicas com astros de Hollywood, é elucidativo saber que os egípcios não se viam como negros nem como asiáticos (povos do atual oriente médio).
Qualquer tentativa de enquadrá-los nessa ou naquela categoria racial diz mais sobre quem classifica do que quem é classificado e não passa de uma tentativa anacrônica de construir a história a partir de seus próprios interesses ideológicos.
O autor parte de um ponto de vista elucidativo, em que tenta desfazer a impressão histórica formada desde a dominação grega até o século XIX de que os egípcios seriam detentores de um saber místico desconhecido e indecifrável (desinformação mantida até hoje em certos meios esotéricos, cabalísticos....).
Isso visto, resta a dica para quem vai ao Egito: faz-se necessário percorrer o rio desde o delta até Elefantina. Fazer o trajecto apenas de Luxor até Elefantina é ver apenas o Novo Império.
Boa leitura e boa viagem!!!