Flávia Menezes 12/08/2022
É PRECISO TER MAIS CORAGEM PRA VIVER DO QUE SE MATAR.
?O Estrangeiro? é uma novela publicada em 1942 pelo autor, filósofo, dramaturgo, jornalista e ensaísta franco-argelino Albert Camus. Muito embora Camus rejeitasse o título de existencialista, é preciso reforçar que essa é uma obra que traz a discussão da existência humana com muita profundidade e maestria.
Apesar deste ser um livro relativamente curto no que diz respeito ao número de páginas, seu conteúdo é bastante rico, e além de trabalhar a questão existencial acima já mencionada, ele traz à tona um tema muito relevante para o nosso momento atual: a alexitimia.
Primeiramente é importante ressaltar que a alexitimia é um conceito que só surgiu por volta dos anos 1970, através do psiquiatra Peter Emmanuel Sifneo, que o usou para se referir aos pacientes que apresentavam uma vida emocional pobre em sonhos e fantasias, e que possuíam severas dificuldades em encontrar palavras para nomear ou expressar suas emoções.
Porém, muito embora a denominação desse transtorno psicológico tenha sido estudada e apresentada anos depois da publicação de ?O Estrangeiro?, isso não quer dizer que esse quadro ainda não existisse. Mas sim, que seu estudo e a sua nomenclatura surgiram posteriormente.
Confesso que foi um verdadeiro deleite ver como o quadro se delineia com tamanha clareza no comportamento e fala do personagem narrador, Meursault. Digo isso, porque os sintomas relacionados à alexitimia são bastante acentuados no que é apresentado pelo protagonista.
Percebemos em Meursault um homem que não tem expressão alguma de sentimentos. Ele não sofre pela mãe que faleceu, ele não consegue demonstrar sentimentos pela mulher com quem se relaciona, e nem mesmo sentir qualquer culpa pelo crime que cometeu. Além disso, ele é um homem sem ambições, e sem sonhos.
Durante as cenas mais intensas, psicologicamente falando, Meursault relata sensações como o sono, o tédio, o calor. Isso ocorre porque em um quadro de alexitima, muitas vezes as emoções são confundidas com sensações. Ou seja, a tristeza pode ser compreendida como sono, ou cansaço. Tudo porque o alexitímico não entende e nem sabe nomear o que sente.
Foi uma feliz surpresa ler um livro que traz um quadro tão importante na nossa atualidade, descrito de uma forma tão bem trabalhada. E quando digo atual, é porque é atual mesmo. No Brasil, temos poucos estudos em relação a esse tema, e quando pesquisei para confirmar o quadro ligado ao personagem dessa história, as comprovações da minha teoria só foram encontradas em teses da língua inglesa ou espanhola. Em português não havia um único trabalho sobre esse livro que apresentasse um quadro clínico específico referente ao problema psicológico apresentado pelo protagonista.
O que é muito triste, porque esse é um transtorno que muitos homens apresentam. Em especial, os das gerações mais antigas, em função dos meninos terem sido educados com rigor excessivo, e com aquela clássica fala de ?meninos não choram?. O que só resultou na repressão das emoções nos homens. Porém, vale ressaltar que hoje em dia, também podemos ver o mesmo quadro ligado ao gênero feminino, já que na atualidade, meninos e meninas já não possuem tantas diferenciações na forma como são criados.
E assim como aconteceu na história com Meursault, durante muitos anos, os alexitímicos eram julgados e rotulados como pessoas frias, sem sentimentos. E esses estudos sobre esse transtorno, auxilia muito na compreensão da dificuldade que essas pessoas possuem em compreender suas emoções, resultando nessa inabilidade em expressá-las. Que no fundo estão ali, porém, repousam em completa inércia.
Com uma narrativa que mais se parece com um diário de bordo jornalístico, ela muito me lembrou a cena do filme ?Marley e Eu?, quando o protagonista, que era jornalista, narra sua coluna, contando sobre a sua rotina com o seu cão labrador de forma contínua. Essa cena me veio muito à mente durante toda a leitura, porque a narrativa do livro possui igualmente esse ritmo rápido, o que possibilita concluí-lo em no máximo 24 horas.
E se o conteúdo todo já é brilhante, o final é simplesmente filosófico, na mais pura essência da beleza do existencialismo. Como uma boa fenomenóloga, ver esse final tão marcado sobre a questão da vida e da existência humana foi fascinante. Chega a ser um momento da história em que você mal consegue tirar os olhos do livro, porque a sua própria mente viaja nessa discussão, te provocando a pensar sobre a existência de Deus, sobre o que é a felicidade, e o que é viver. E tudo isso acontecendo em um momento decisivo na vida deste personagem principal.
?O Estrangeiro? não é apenas um livro, mas um convite para mergulharmos nessa magnitude que é a existência humana, e na beleza e riqueza das cores que as nossas emoções dão a nossa vida.
Vivemos tanto nessas apologias ao ?pega mais não se apega?, ?abstrai e finge demência?, e todos esses modismos que resultam em reprimir nossas emoções, que não percebemos que essa ânsia por não sentir nada, por desligarmos a nossa humanidade, como se diz no seriado ?The Vampire Diaries?, resulta na nossa desconexão com o outro. E por mais que se valorize o não se apegar a ninguém, o fato é que o nosso existir está fortemente condicionado ao olhar do outro.
É quando o outro me vê, que eu existo. É quando o outro me percebe, que eu posso ser. Que meu corpo ganha vida, e que a minha vida passa a ter sentido. E mesmo que a solidão seja uma condição da existência humana (nascemos sós, e morremos sós), o desejo por esse olhar do outro é o que eu mais persigo.
Porque sem ele, sem o outro, meu fim é o mesmo vivido por Meursault: a condenação a não mais ser, nem muito menos, existir. Porque sem estar com o outro, sem valorizá-lo, sem percebê-lo e sem ser por ele percebida, eu me torno para esse mundo uma verdadeira estrangeira, uma total desconhecida.