Michael Jordan 01/09/2017
Uma, duas. Duas que são uma só e existindo enquanto simbiose, alguma delas seria sempre negada. "Para mim nunca houve um cordão umbilical que pudesse ser cortado. Só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser a carne da mãe. Não há como escapar da carne da mãe. O útero é para sempre". Uma jornalista, redatora, que certo dia recebe um telefonema: sua mãe, que não via há muito tempo, foi encontrada no apartamento, em estado deplorável, com a perna sendo comida por seu gato. A partir dai, Laura revisita a sua infância, suas fantasias e traumas, ao passo em que lida com seus demônios nas situações presentes. “Como eles poderiam saber que não há longe o suficiente para elas? Que não há separação possível entre elas? Que quando a mãe começou a apodrecer naquele apartamento algo na filha também começou a cheirar? Que não era o suicídio da mãe, mas o assassinato da filha?”. Corpos torturados, que não são posse mas extensão. O enredo se constrói sobre verdades doloridas e caóticas dos traumas vividos por cada uma, enquanto buscam resgatar o relacionamento entre elas no enfrentamento de um câncer terminal que atinge Maria Lúcia. Ambas vítimas de abuso sexual, libertam-se e perdoam-se, a medida que narram suas experiências escrevendo um livro. Enquanto Laura jura que a mãe faz tudo para infernizar sua vida, Maria Lúcia sabe que a filha faz tudo para atingi-la, mas devido ao seu grave problema de saúde, são forçadas a conviver novamente, reconstruir laços e buscar um perdão tantas vezes sonhado e tantas vezes recusado: um perdão por si mesma.. Os braços de Laura ainda sangram, mas ao digitar a primeira palavra, ela não se corta mais. Seu corpo é um mapa geográfico de suas dores. Com capítulos intercalados entre a narradora da história (Laura), em primeira pessoa; o livro que ela escreve durante esse processo, narrado em terceira pessoa; e as anotações clandestinas da mãe, que nos acrescenta seu ponto de vista. Esta oscilação entre as narrativas, sem monopólio de voz, essa necessidade de criar uma ficção para que a narradora tenha acesso ao que ela não conseguiria sendo ela mesma, nos revelam a impossibilidade de existências independentes, longes uma da outra, autossuficientes. Operando em mecanismos de projeção e introjeção, frutos de uma depressão pós parto, complexos edipianos e uma relação fusional entre mãe/filha, o livro é um desabafo selvagem. Os mais variados assuntos são derramados em sua tessitura narrativa, desde a velhice, interdição, loucura, infanticídio, estupro, abuso infantil, automutilação, depressão, eutanásia, críticas sociais e também às instituições. A realidade das personagens machuca, incomoda, provoca indignação, nojo, medo, horror, lembranças indesejáveis. Um livrão para se desconstruir as relações romantizadas e superestimadas entre mães e filhas, denunciando a potência da crueldade que se opera nesses espaços de intimidades. Eliane Brum consegue, com sua escrita felina, denunciar verdades brutas, cruas, desconfortáveis, corrosivas. Há um pouco de nós em cada uma delas, personagens míticas, que não hesitam em desnudar-se, denunciando o lado grandioso e mesquinho do viver e morrer. Nesse sentido, a aproximação da morte da mãe seria também garantia da prevalência da sua própria voz e necessidade de reconstruir a sua vida. Matar ou não a mãe? Ou matar a parte mais doentia de si? "Não é mais um jogo entre nós duas. A morte encerra todos os jogos. Tenho vontade de matá-la arrancando pedaços da sua carne com as minhas unhas. Não por ódio, mas por amor. Por desespero. Porque ela vai me deixar. E aí só haverá eu. Um corpo arrastando um cadáver.” Um livro que dói. Uma, duas, muitas vezes.