Rafael467 03/07/2023
Sei lá sabe
Fim de partida é uma peça que se vale de elementos bastante esquisitos para discorrer sobre seu tema central. Como um primeiro exemplo, a obra se vale de diálogos que à primeira impressão não possuem sentido algum, como em; ?Vá buscar pra mim duas rodas de bicicleta.?, ?Não há mais rodas de bicicleta.?, ?O que você fez com a sua bicicleta??, ?Nunca tive uma bicicleta.? soam estranhos para o público. Além disso, a obra não possui nenhum lastro temporal que possa nos indicar uma data, o máximo que conseguimos entender é que se passa num cenário pós-apocalíptico. Outro fator ?aleatório? da peça é a impossibilidade de classificação entre uma comédia e uma tragédia, como exemplo disso temos a cena em que Hamm pede para que Clov o coloque exatamente no centro da sala, mas ele sequer enxerga então não poderia saber onde fica o centro, essa situação cria para o público uma dúvida entre se devemos ter pena do personagem ou rir dessa situação tosca. Esses fatores subvertem o que seriam os padrões do teatro dramático. Como pode uma peça não fazer sentido algum?
Para começar, nada disso é por acaso, o autor constrói a obra dessa maneira com um propósito: o próprio questionamento de sentido. Ele cria um enredo que sai do nada para o nada no qual várias ações acontecem, como as idas de Clov até a janela, porém elas não significam nada para o público, mas por algum motivo os personagens seguem agindo como se aquilo tivesse algum propósito. Poderíamos ter como explicação para isso que o autor simula um sentido interno para que nós possamos imaginar que há um enredo central, mas o próprio enredo central é a falta de sentido que essa simulação cria, a peça parece nos levar a lê-la como uma peça comum com começo, meio e fim. Contudo, ela não se comporta como um drama comum, a cada vez que tentamos dar sentido a algo na obra logo depois isso se mostra mais uma ?aleatoriedade?, exemplos disso seriam os objetos como o cachorro, a luneta e a escada, todos poderiam ter serventia, mas na peça são usados e não surtem efeito em nada, são ações vazias feitas a partir de objetos vazios que só podem construir sentido a partir de seu uso e não por sua essência.
Outra subversão que a peça traz é o conceito de tempo, os personagens parecem existir quase que numa outra dimensão onde não há passado nem futuro. O passado até é mencionado, mas ele não afeta o presente, como se fosse de uma outra linha temporal. Afinal, como pode haver passado sem afetar o presente? Para essa resposta a peça dá indicações por meio do seu próprio propósito: a desconstrução do sentido por meio de uma aparente falta de sentido. A linha do tempo é um dos conceitos principais do teatro moderno, sendo a passagem do tempo a construção de algo novo a partir do passado, porém se esse passado recente, que era presente a pouco tempo atrás, não tem nenhuma relação com o presente atual então o presente também não possui sentido, ele está avulso na existência. O tempo na peça serve mais uma vez para questionar o sentido do sentido.
A questão familiar na peça também é presente, os personagens são parentes porém se comportam como se fossem completamente descartáveis uns para os outros, como quando Hamm fala ?Não há mais velhos como antigamente! Empanturrar-se, empanturrar-se, não pensam em outra coisa!? para quando Nagg pede papa, ou quando Nagg diz ?Esqueça meus cotos.? em resposta à preocupação de Hamm sobre seus cotos. Eles agem não com carinho uns com os outros, mas com uma espécie de ?apatia? na qual pouco importa a situação do outro se for negativa ou positiva, o que desconstrói também o sentido da família, o próprio amor é revisto pela peça como sendo sem sentido.
Finalizando, a peça está o tempo inteiro subvertendo qualquer forma de relação de significado que podemos construir a partir do que já lemos em nossas vidas como uma peça dramática. A obra está propositalmente não tendo sentido para a partir desse fator questionar algo maior que a engloba como um todo que é o questionamento do sentido, há um paradoxo entre o não ser sendo e dessa forma se torna uma peça em que cada micro-elemento está sujeito a um conceito totalizante.