MatheusPetris 11/03/2024
Tudo escoa? Tudo se repete
Afinal de contas, quem é Godot? Não sabemos e não saberemos. A única concretude de sua existência está na figura de uma personagem chamada Menino. Ele aparece rapidamente duas vezes, em ambas ao final dos dois atos da peça. Além da existência de Godot, o Menino revela que o tão esperado Godot não virá hoje, mas amanhã. Esse caráter cíclico — assim como a lua brilhando ao final dos atos, a noite caindo e a esperança juntamente à ela — demarcado por essa repetição, serve também como espelhamento de um ato ao outro: a espera se repete. O tempo escoa; esperamos Godot.
Essa duplicação não se limita a unidade estrutural da peça, são “(...) dois dias, dois pares — Didi [Vladmir] e Gogô [Estragon], Pozzo e Lucky” (Fábio de Souza Andrade), além dos dois encontros entre os pares. Esses dois pares se confrontam, embora ambos reforcem uma memória rarefeita. É John Fletcher quem reforça essa duplicação: “O nome de Estragon tem o mesmo número de letras que o de Vladmir; o mesmo vale para Pozzo e Lucky”.
Essa preocupação rigorosa com os nomes — para além da semântica — me remeteu a Gogol. Boris Eikhenbaum, quando analisou a famosa novela O Capote, chamou atenção para a preocupação de Gógol com os nomes de suas personagens, demonstrando como dos rascunhos à versão final, havia modificações em prol de um rigor muito claro. Em alguns casos, era uma escolha semântica; porém, em vários outros, era apenas fônica, um trocadilho acústico. Mas não é bem essa aproximação de que quero tratar.
No mesmo texto, Boris situa a novela de Gógol como uma “narrativa direta”, a qual submete o enredo para o segundo plano, o papel organizador da narrativa é menos o enredo, um encadeamento de acontecimentos — elos que ligam eventos —, uma progressão de desenlaces, a chegada de um clímax, do que a figura do narrador. É lógico que estamos falando de outro gênero, estamos falando de uma narrativa dramática, não de prosa. Porém, Gogol, como se sabe, nunca se importou muito com o enredo e sim com a organização dos seus elementos, muitas vezes criando comicidade em um único acontecimento simples e derivando os outros destes, mais ou menos como nos diz Boris: “Essa situação serve de estímulo, de pretexto a um acúmulo de procedimentos cômicos”. Não é, precisamente isso, que ocorre nesta peça?
Boris novamente: “(...) o enredo só tem uma importância marginal e, por essência, estático (...) suas personagens são apenas a projeção fixa de uma atitude”.
Se Beckett mantém duas das unidades aristotélicas em sua peça (temporal e espacial), podemos dizer o mesmo da ação? A aparente ação das personagens não avança a narrativa, não desencadeia acontecimentos, apenas os repetem. Se a peça “renuncia a relatar uma ação, o faz apenas porque a ação que descreve é a vida desprovida de ação”, afinal, “a essência da peça é a espera, em meio à incerteza” (Hugh Kenner). É o que Fábio de Souza Andrade nos diz: “perdidos no palco em meio à paisagem deserta, querendo partir, mas presos a um compromisso tão impreciso quanto irreparável”. O espaço se repete; os dias, apesar de diferentes, se mostram os mesmos. Mas a ação, está não progride, é estática.
A pergunta “E o que fazemos agora?” resume essa ideia, assim como a resposta imediata: “Esperamos”. Na iminência do que fazer, fazem o que podem, esperam. A repetição da pergunta “O quê”, sinaliza essa incapacidade de progredir, ou melhor, de saber o que aconteceu ou acontecerá. Vladmir e Estragon se confundem em diálogos simples, esquecem o que falaram minutos antes, e não apenas o que estão esperando, se já esperaram, etc. Tudo parece rarefeito, incerto, passado, presente e futuro. O tempo existe, ele escoa, mas se repete. “E então será dia mais uma vez”.