NINAZEN1K 08/05/2024
Não são isso todos os nossos sonhos?
Neil Gaiman mais uma vez brinca com instituições, com arte, linhas, texturas, culturas e saberes. Ele reverencia, diverte e luta. Faz tudo virar sonho. E que conhecimento vasto de tantas mitologias, feitiços, lendas populares, contos e seres este autor tem.
Agora, não me entenda mal, A Estação das Brumas só não funcionou. Mas tudo bem, nós temos o arco de Um Jogo de Você.
Com referências a outros mestres - Stephen King, Tolkien, a estrada de tijolos amarelos de Oz ou Nárnia - ele delineou a parte colorida - ora, vai sim haver algum velho ermitão maluco, com instruções entalhadas numa rocha e só visíveis no dia em que os personagens pintarem por lá; teremos também Thor, Loki e a Baba Yaga (com seu pilão e almoriz, na sua casa com pernas de galinha), e o Caos e a Ordem -, pois haverá sempre o mundo de imaginação sem limites. E os sonhos são espetaculares (ver página 409).
Mas há a realidade, de uma vida dura e violenta. De Wanda, de Barbie, de Augustus, do Imperador da América. Há uma personagem trans tão maravilhosa e forte com seus muitos debates e dores. Gaiman propõe lutas reais, vivências e temas fortes, numa graphic novel adulta e consciente.
E ilustrar consciência e conhecimento funciona bem: Como a diferença entre precaução e prevenção, o Verde do Violinista como um sonho real dos marinheiros e a história de Marco Polo - que inclusive encerra a coletânea com qualidade, ainda que um conto individual, que não é bem minha gama. Aqui, retomam-se conceitos essenciais, também com possibilidades para continuações através dos acontecimentos no deserto de Lop (onde quem entra não sai mais) - como os Lugares Maleáveis e as Zonas de Alternância. E o fechamento com retorno ao início do Arco 1 (1992) é completamente espetacular.
Gaiman consegue encontrar palavras que descrevem a sensação de sonho tão bem (como “Foi uma espécie de revelação. Sonhos, areia, histórias. Desertos, cidades e o tempo. Os grãos caíam lentamente escorrendo dos dedos pálidos do rei-sonho para as suas mãos sujas de viajante. Os padrões que formavam ao caírem iluminaram sua mente: uma paisagem pulsando diante dos clarões de um relâmpago distante”), porque os domínios do sonhar são assim, nós não conseguimos fixar. E “Será que tais conceitos se aplicavam à situação?”, ora, o Mundo dos Sonhos é regido por outras regras, que mais sentimos, experienciamos e de algum modo sabemos do que podemos de fato explicar. “Uma areia brilhante e multicolorida que se dissipou no vento gélido do fim do mundo” e “Eu jamais me esquecerei disto, pensou, triunfante. Eu jamais me esquecerei do que aprendi aqui… Mas seu mundo escureceu, tornou-se maleável e se desfez.”. Não são isso todos os nossos sonhos?
A edição é muito caprichada, um verdadeiro presente aos fãs, mas ainda gostei mais do primeiro volume. O texto do posfácio, no entanto, me explicou e traduziu pela escrita um sentimento que nunca antes pude colocar em palavras:
“Uma das missões do escritor é escrever como se aquilo fosse novo [?] Passei mais de seis meses com Barbie e Wanda e Hazel e Foxglove e Wilkinson e Thessaly e todos eles vagando pela minha cabeça. Tem noites em que sinto saudades. (1993) [?] Cada quadro traz memórias do lugar onde eu estava quando o escrevi [?] Eu sabia o caminho a seguir, mesmo que ninguém mais soubesse. (2007)”