Jon O'Brien 19/06/2019
A crueldade, bela como vísceras, como ponto forte do livro
CONTÉM SPOILERS LEVÍSSIMOS, APENAS PARA O LEITOR SE SITUAR MELHOR NA HISTÓRIA.
O meu primeiro contato com Natsuo Kirino, autora de diversos romances policiais e de suspense psicológico, foi com Grotescas, minha melhor leitura de 2019 até agora. O livro, completamente denso e bruto, é muito mais do que uma análise profunda da personalidade humana. Ele tem uma alma própria e te suga para dentro dele. Eu lhe garanto: ao terminar a leitura, você não sai ileso.
Quando falo que gosto de ler literatura estrangeira, me refiro a mais do que ler livros americanos ou britânicos. Gosto de me aventurar por culturas espanholas, como em O Guardião Invisível, da Dolores Redondo, e culturas japonesas, como em Grotescas, da Natsuo Kirino.
Entretanto, apesar de editoras como a Morro Branco se dedicarem a traduzir obras de vários cantos do mundo, poucos são os títulos que vêm da Islândia, da China ou da Índia, e muitas vezes chegam ao Brasil não com tradução direto do original, mas sim do inglês, o que pode fazer com que se perda um pouco do sentido, do significado.
Com Grotescas, também é assim. O livro foi traduzido do inglês, quando tenho a certeza de que há ótimos tradutores da língua japonesa espalhados pelo Brasil. O que acha? Mas vamos falar da história, que é o que mais interessa? Grotescas é um suspense psicológico sobre o assassinato de duas prostitutas, e é um livro repleto de críticas em relação à sociedade japonesa, muito ligada à beleza e ao status que ela traz.
No livro, temos como protagonista uma mulher de meia-idade cujo nome não é revelado. Ela é irmã de uma das vítimas e ex-colega de escola da outra. Tomada por sentimentos de inadequação e rancor desde os primeiros anos de vida, a protagonista não consegue sentir nada mais do que ódio pela irmã, porque, enquanto Yuriko, a irmã assassinada, é dotada de uma beleza monstruosa e descomunal (e que, por isso, recebe uma série de vantagens no Japão, país onde a beleza é capaz de abrir portas), a nossa protagonista é feia e sem graça. A inteligência que tem, muito superior à da irmã, nunca foi valorizada da mesma forma que a beleza de Yuriko.
Este é o ponto de partida de Grotescas: a narradora sem nome e não totalmente confiável nos presenteia com uma história não-linear que traça as vidas das prostitutas brutalmente assassinadas ao mesmo tempo que fala de si mesma, das suas aflições e de toda a maldade que transpassou em sua vida. Além das motivações de Yuriko, conhecemos a vida de Kazue, uma mulher com uma formação eminente que nos faz perguntar por que uma pessoa com um excelente emprego de dia em uma firma conceituada se tornaria prostituta à noite.
O livro tem um conteúdo muito diversificado, o que é agradável aos olhos. Além dos relatos da Srta. Hirata, que é a narradora do livro, temos o depoimento de Zhang, o suposto assassino das prostitutas, e os diários das mulheres assassinadas, Yuriko e Kazue. Desta forma, apesar de o livro se desenrolar de forma lenta, ele tem muitas facetas, o que não me pareceu nem um pouco cansativo. Ele sempre conseguiu se reinventar. Sobre os diários: muita gente reclamou que os diários, por usarem travessões para marcar as falas, perdem a verossimilhança e faz com que não pareçam diários. Mas eu discordo. A Srta. Hirata, protagonista do livro, afirmou ter modificado o diário da irmã, Yuriko, e por isso pode ter reescrito o diário daquela forma. Se ela modificou o diário da irmã, pode ter modificado o da Kazue também, inclusive inserindo detalhes mais pérfidos ainda nas narrativas, para degradar as personagens. Afinal, a protagonista é um monstro. Achei totalmente verossímil.
Autoras como a Gillian Flynn levam a fama de serem cruéis em suas narrações, mostrando a força feminina para a maldade. Ruth Rendell, minha autora preferida, é bastante densa em suas descrições, mas nem ela nem Gillian Flynn conseguem superar Natsuo Kirino em descrições frias e pesadas, que deixam qualquer um de queixo caído. Não só os acontecimentos, como também a forma que é usada para contar o livro, provam que Natsuo Kirino nos mostra personagens com outros níveis de maldade e com uma verossimilhança incomparável.
Natsuo Kirino conseguiu criar uma protagonista 100% odiável. Apesar de entendermos completamente os seus motivos, assim como os motivos que regem a vida de todos os personagens da trama, as ações e os pensamentos da personagem principal não deixam de ser chocantes. Quanto ódio há no coração dessa mulher, quanto rancor ela possui! Desta forma, é possível afirmar que ela é tão grotesca quanto, ou ainda mais grotesca do que as prostitutas assassinadas.
Desculpe-me, mas eu li Ruth Rendell e Dostoiévski, e, apesar de gostar muito da construção de personagem de livros como Carne Trêmula e Crime e Castigo, foi em Grotescas que eu senti um nível ainda mais chocante de detalhamento emocional. Ele me sugou. Para mim, é a melhor construção de personagens que já vi na vida, e suponho que os outros livros da autora também tenham muito disso.
O livro é longo, possuindo quase 600 páginas de desgraçamento mental, e por algum motivo, apesar de ter amado a leitura do início ao fim, demorei incríveis três meses para lê-lo. Talvez a leitura tenha sido muito forte para mim, talvez eu tenha me sentido meio indisposto por causa do modo como os acontecimentos do livro me chocaram, e no fim demorei muito a ler. Entretanto, a leitura espaçada foi muito interessante. Consegui aproveitar bastante o conteúdo e intercalar a leitura com outros livros legais.
E, apesar de muita gente comentar que a autora enrolou muito em alguns trechos, eu acho que esse argumento não é válido para o caso de Grotescas. Temos aqui um livro que não preza pelos acontecimentos, mas sim pelo modo como os acontecimentos são descritos. A escrita pontual e fria deste livro da Natsuo Kirino, sem figuras ou floreios, foi feita para DISSECAR a personalidade humana e expôr o modo como a sociedade japonesa é competitiva, muitas vezes fazendo com que os japoneses sejam levados a atos extremos em busca do primeiro lugar ao sol.
Uma amiga que leu o livro comentou que não conseguiu se apegar a nenhum personagem, e eu concordo com ela nesse ponto. Mas não vejo isso como erro da autora. Na verdade, todos os personagens são detestáveis; no mínimo, ridículos. A protagonista é uma mulher cruel, que considera a maldade como um talento seu. Então, ela lapida sua maldade (seu talento), a única coisa sua que sente que é boa. Outros personagens, como a Kazue, só me despertaram sentimentos de dó e impotência. Eu a via se humilhando em busca da aceitação, sem nunca consegui-la, e isso me deixava mal de verdade. Apesar disso, apesar de não gostarmos de nenhum personagem, eles são muito bem-construídos, de modo que você fica curioso para saber os pormenores de suas vidas.
Acredito que este livro é muito interessante de ser lido por pessoas que gostam de narrativas lentas e que prezam pelo desenvolvimento da psique dos personagens, pois Grotescas é uma verdadeira aula de Psicologia no quesito maldade humana. Tipo, até onde as pessoas podem chegar no sentido competitivo? Recomendo também para pessoas que querem conhecer mais da cultura japonesa, em particular os pontos negativos presentes nessa cultura, mostrando que o Japão não é apenas flores de cerejeira.
E aí, você gostou da resenha? Comente sobre o que achou dela. Em breve, gravarei um vídeo deste conteúdo, e espero que vocês gostem. Minha próxima leitura da Natsuo Kirino será Do Outro Lado, talvez ainda neste ano. Tentei ao máximo descrever o universo de Grotescas, a beleza na feiura do livro. Sim, o livro é belo, belo como vísceras, como vi em um comentário. Apesar de tentar descrever da melhor forma possível, em uma das maiores resenhas que já escrevi (talvez a maior), sugiro que você leia o livro, pois Grotescas é indescritível.
site: https://redipeblog.wordpress.com/2019/06/19/resenha-grotescas-natsuo-kirino-thriller-psicologico-japones/