Leonardo 04/08/2012
Literatura, sociologia, política, literatura
Disponível em http://catalisecritica.wordpress.com/
Já tinha ouvido falar de Rubens Figueiredo como tradutor. Lembro de ter me chamado a atenção que ele traduziu direto do russo obras como Anna Karênina, Guerra e Paz, Pais e Filhos e outros russos. Há pouco tempo vi esse seu livro em uma prateleira e fiquei curioso. Imaginava o autor na casa dos setenta, meio barbudo, quase personificando os russos que ele traduz. Na minha ignorância, pensei que Passageiro do fim do dia se tratasse de sua primeira incursão como autor. Alguém como ele deve ter uma visão interessante da literatura. Quero ler o que ele escreve.
Pouco tempo depois o livro acabou chegando às minhas mãos e só então tive a curiosidade de olhar a orelha e descobrir que Rubens Figueiredo é bem mais jovem do que eu imaginava: 56 anos. Descobri também que ele escreve há um bom tempo, e que já foi, inclusive, bastante premiado como escritor.
Apenas a título de curiosidade, ainda tomei conhecimento de que ele já traduziu gente como Paul Auster, Philip Roth, Ian McEwan, Dashiel Hammett...
Chegando ao livro, finalmente, quando li do que se tratava, me decepcionei um pouco, imaginando uma história repetitiva e sem graça: um homem está num ônibus rumo à casa de sua namorada, que vive num subúrbio de uma grande cidade brasileira. Enquanto folheia um livro sobre uma visita de Darwin ao Brasil e ouve notícias da economia no rádio de pilha, seu pensamento viaja, e ele faz uma espécie de revisão da sua vida.
Depois de descobrir que o livro não tem nenhuma divisão em capítulos (197 páginas sem interrupção), fiquei um pouco desanimado.
Mas foi só começar a leitura e ver que eu estava diante de alguém que sabe como fazer literatura. Pedro, o passageiro do fim do dia, é um rapaz voador, que ao mesmo tempo em que desvia facilmente a atenção do que deveria ser considerado importante, consegue se ater a detalhes, a minúcias, a coisas que a gente sabe que existe, mas esquece de lembrar. Uma pequena cicatriz no cotovelo do homem que está na cadeira da frente do ônibus, ou um suspirar mais longo daquela senhora de cabelo mal amarrado depois que uma roda do ônibus passa com violência por um buraco. Esses dois pequenos detalhes são suficientes para que Pedro comece a pensar se aquele homem conseguiu aquela cicatriz quando criança, numa briga de rua, ou no exército, quando passava por baixo de alguma cerca, na lama, cumprindo castigo por ter dormido durante algum exercício. Ou imaginar toda uma história que justifique a dor daquela mulher.
Naturalmente, essa preocupação com os detalhes estão presentes na forma como Rubens Figueiredo conta a história. Não se trata de encher linguiça ou de atrapalhar a história com detalhes inúteis. O autor desenha um cenário vívido e real. Enquanto lia, eu via nitidamente em minha mente um filme. Conseguia imaginar o ônibus, as ruas pelas quais passava Pedro, como era a parada do ônibus, o asfalto, a cadeira na qual ele sentava... Rubens Figueiredo dá aula de como dar vida a uma cena ao misturar descrição com ação em diferentes tempos e níveis. Lembrei-me da impressão que tive ao ler Madame Bovary e da aula que James Wood dá sobre exatamente isso, a partir de uma cena de A Educação Sentimental, também de Flaubert.
“Ali, bem no cantinho, o asfalto formara uma dobra muito saliente: o piche quente de sol tinha esfriado e endurecido num formato de marola, na margem da pista. Os dois ônibus pararam quase embaixo de uma passarela de pedestres toda feita de placas de aço unidas com milhares de rebites e um tanto enferrujadas. Junto à escada de acesso havia uma barraquinha feita de tábuas pregadas, a essa hora já iluminada por dentro graças a uma lâmpada presa num fio comprido amarrado à passarela lá em cima, de onde a energia era desviada.
Ali dentro, uma mulher vendia pacotes de biscoitos, pipoca, balas, bananada, mate e refrigerante em latinhas e em copinhos de plástico fechados, guardados no gelo, dentro de uma caixa de isopor apoiada sobre a terra e toda envolvida em tiras de fita adesiva, para não romper. O gelo tinha derretido àquela altura da tarde, só restava no fundo uma água meio turva, meio grossa, mas ainda fresca. Tinha vazado um pouco por algum furo ou rachadura e uma poça enlameada se espalhava embaixo da caixa de isopor.
As portas de trás dos dois ônibus se abriram, uma de cada vez, com um chiado e um estalo...”
E nesse ritmo o autor continua. Pedro é um observador, e nós vemos tudo pelos seus olhos. E o que vemos? Rubens Figueiredo conta a história de um homem de classe média-baixa, inteligente, que conseguiu ser aprovado no vestibular de direito de uma universidade pública, mas que não conseguiu terminar o curso, já que sempre tirava notas baixas por não se concentrar, não estudar como devia. Ele acaba se tornando dono de um sebo especializado em livros jurídicos e tem uma namorada, Rosane, que mora no Tirol, um bairro bastante pobre, para onde ele vai todos os finais de semana. Pedro não se preocupa muito com o seu futuro, as coisas simplesmente parecem acontecer. Já Rosane, que vive numa realidade bastante diferente, testemunhando e vivendo pobreza, privações, humilhações, crime e até a perda da humanidade, sonha em “vencer na vida”, “ser alguém”. O livro é sobre essa gente. Pobre, excluída, marginalizada. A proximidade com que o autor fala deles é desconcertante. Uma cena particularmente marcante é a ida do pai e da tia de Rosane ao supermercado. A cena é tão real que é quase impossível duvidar de que tudo que está no livro tenha realmente tenha acontecido. Fica-se com a impressão de que o autor foi colhendo histórias e pondo-as no livro, como se estivesse fazendo um documentário.
A falta de divisão do livro em capítulos ajudam a criar a ideia de que esta é uma história para ser lida de uma vez. Numa viagem de pouco mais de duas horas, tomamos conhecimento dos interesses de Pedro, do seu amor por Rosane, daquilo que compõe seu dia-a-dia. Rubens Figueiredo não perde tempo e faz sua crítica social, seja na pessoa de um juiz corrupto, seja numa das passagens que mais mostram o talento do autor, quando Pedro observa dois garotos jogando GTA numa lan house.
Passageiro do fim do dia é literatura, sociologia e política. Mas é literatura em altíssimo nível, e certamente traz um sabor especial a quem tem uma origem mais simples e é capaz de reconhecer “pequenos” dramas pelos quais passam milhões de brasileiros diariamente.
Minha Avaliação:
5 estrelas em 5