Carlozandre 20/11/2014
No rastro de Vargas Llosa
Ninguém discute que a fatia mais nobre e impactante da obra do Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa reside em sua ficção. Mas esta coletânea de ensaios permite uma mirada bastante abrangente do brilho intelectual do escritor enquanto polemista, crítico, jornalista, homem entregue à tarefa de pensar a América Latina.
Em Sabres e Utopias (Objetiva, 430 páginas), o escritor reúne ensaios, artigos, memórias e discursos redigidos ao longo de 40 anos. A seleção do material, feita pelo crítico mexicano Carlos Granés, permite acompanhar a própria trajetória intelectual de Vargas Llosa, incluindo a migração política da esquerda que apoiava o regime cubano para o liberalismo econômico.
Os textos favoráveis ao “saldo da revolução”, de 1967, são logo seguidos pelas cartas de 1971 com as quais rompia com o regime devido ao tratamento censório dispensado a artistas e à perseguição movida contra o poeta Heberto Padilla. Depois de receber o Casa de las Américas em 1967, Padilla teve o prêmio cassado e foi expulso da União dos Escritores por críticas à revolução. A gota d’água, mencionada por Llosa na carta aberta a Fidel incluída no livro, foi a prisão de Padilla, seguida por uma aviltante “autocrítica” pública que o intelectual foi obrigado a fazer, negando qualquer uma de suas declarações anteriores. O episódio levou Llosa a redigir um manifesto assinado por outros intelectuais, como Jean-Paul Sartre e Jorge Semprún, contra as perseguições a dissidentes. Tal manifesto também está no livro.
Sabres e Utopias também documenta sua relação com a epopeia de Canudos, tema de seu romance A Guerra do Fim do Mundo. É bom esclarecer que, assim como costuma acontecer com diferentes coletâneas de música, que sempre têm uma ou outra faixa repetida, uma parte de Sabres e Utopias já havia sido publicada em português. Os argutos perfis que Llosa traça de artistas como Frida Kahlo ou de escritores seus contemporâneos, como Jorge Amado, José Donoso e Guillermo Cabrera Infante, entre muitos outros, já faziam parte de Dicionário Amoroso da América Latina (Ediouro, 2006). E há textos que também já haviam saído em A Linguagem da Paixão (ARX, 2007) – entre eles o que dá título ao livro, um elogio à inquietação intelectual de Octávio Paz, escrito por ocasião da morte do Nobel mexicano, em 1998. O título do ensaio empresta uma frase de Paz sobre André Breton. Para o mexicano, era impossível “falar do criador do surrealismo sem usar a linguagem da paixão”. Curiosamente, o perfil de Octávio Paz nesse texto em vários momentos corresponderia ao do próprio Vargas Llosa hoje.
Como Paz em sua época, Llosa é um Nobel difícil – não por sua obras, mas por sua profissão de fé de intelectual atuante nos debates do mundo. Muitos têm dificuldade de aceitar as posturas reacionárias do autor, deixando que a antipatia ideológica contamine a apreciação da sua gigantesca obra literária – uma distorção que não deve ser elogiada nem justificada, longe disso, mas cuja gênese foi possível compreender por quem assistiu com atenção à palestra de Vargas Llosa no Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, em 2010. Llosa falou sobre o que considera a “banalização e a trivialização da noção de cultura” – um conceito que ele apresenta com uma certa nostalgia de uma época em que as hierarquias dos valores culturais estavam mais bem delimitadas. Como ele mesmo escreveu na conferência lida no Salão de Atos da UFRGS (na verdade uma reapresentação de um artigo já publicado no site Letras Libres, em julho de 2010):
La noción de cultura se extendió tanto que, aunque nadie se atrevería a reconocerlo de manera explícita, se ha esfumado. Se volvió un fantasma inaprensible, multitudinario y traslaticio. Porque ya nadie es culto si todos creen serlo o si el contenido de lo que llamamos cultura ha sido depravado de tal modo que todos puedan justificadamente creer que lo son.
Ao fazer tais considerações, seria inevitável que em algum momento de sua palestra Vargas Llosa precisasse fazer a crítica do pensamento de Foucault – e até aí nada demais, há muitas críticas a ser feitas ao hoje hegemônico Foucault –, mas a maneira como isso foi feito me soou dissonante, deselegante, até, para um homem que fez da elegância uma espécie de emblema pessoal, no texto e em sua própria figura. Mesmo reconhecendo o brilho intelectual e a inteligência de Foucault, Llosa desferiu um golpe abaixo da linha da cintura ao criticar o pendor paradoxalmente “iconoclasta” de Foucault e mencionar que sua aversão à cultura ocidental o havia induzido “a creer que era más factible encontrar la emancipación moral y política apedreando policías, frecuentando los baños “gays” de San Francisco o los clubes sadomasoquistas de París, que en las aulas escolares o las ánforas electorales“.
A tirada moralista ad hominem foi seguida logo após, como que amarrando as duas proposições em ordem de causa e efeito, por um comentário sobre o fato de Foucault haver contraído Aids e ter negado até o fim sua natureza de doença epidemiológica, enxergando-a como uma armadilha contra a emancipação do corpo. Foi aquele momento em que, com um bem mais do que vago desconforto, me retorci na cadeira pensando: “precisava?” Llosa também não respondeu a pergunta feita por Foucault e que não pode ser ignorada depois de posta no debate intelectual: quem tem o direito de falar pelos demais ao eleger os parâmetros dessa “cultura” da qual ele sente tanta saudade? Llosa acenou com fórmulas vagas, um respeito aos “mestres”, um retorno à noção anterior de cultura como hierarquia, mas sem tocar no ponto fulcral: o papel de quem estabelece essa hierarquia.
Mas eu falava de Octávio Paz e Vargas Llosa. E a correspondência entre os dois é tanta que uma das frases usadas por Llosa para descrever a obra de Paz em A Linguagem da Paixão, também descrever a impressão final acerca dos ensaios meticulosos do mais novo Nobel (e até um pouco sobre o teor do que ele disse no Fronteiras):
“Como tocou em um leque muito amplo de assuntos, não pôde opinar sobre todos eles coma mesma verve, sendo, em alguns casos, superficial e leviano. Mas mesmo nessas páginas traçadas às pressas sobre a Índia ou o amor, que não dizem nada muito pessoal nem profundo, o que elas dizem está colocado com tanta elegância e clareza, com tanta inteligência e brilho, que é impossível deixar de lê-las até o fim.”