spoiler visualizarAngie 03/06/2014
- SPOILERS! -
Nesse romance, publicado em 1947, o filósofo Jean-Paul Sartre apresenta dois personagens, Pierre e Eva, que se conhecem de uma forma incomum: após a vida. Os dois descobrem, então, que eles eram destinados um ao outro, e deveriam ter se conhecido quando vivos. Assim, têm mais uma chance de voltar à vida e de reconstruírem o que haviam planejado. Contudo, o idealizado não se cumpre e ambos tem um fim trágico.
O livro não tem capítulos, mas sinalizações dos locais onde se desenvolverão as cenas da trama, as quais ocorrem simultaneamente para os protagonistas. O primeiro local é "O quarto de Eva". Nele tomamos conhecimento de uma mulher casada e rica ("O ouro de uma aliança brilha iluminado pela luz."), chamada Eva Charlier, que se encontra deitada na cama, adoecida. Logo em seguida, entra sorrateiramente no quarto um homem, André Charlier, e já nesse início do livro o(a) leitor(a) pode inferir que há algo de mal intencionado em suas atitudes:
"André endireita-se, volta a cabeça na direção da mesa de cabeceira onde está um copo com água. Tira do bolso um frasco conta-gotas, aproxima-o do copo e, lentamente, deita-lhe algumas gotas.
Mas, como Eva mexe a cabeça, guarda bruscamente o frasco no bolso e observa com um olhar agudo e duro a sua mulher adormecida."
Na "Sala dos Charlier", conhecemos a irmã de Eva, Lucette. Descrita como "bonita, jovem, talvez 17 anos", além de pueril e mimada, Lucette lamenta a enfermidade de Eva, e é acolhida pelo cunhado. André aqui se mostra excessivamente bondoso e compadecido com a menina, abraçando-a e deixando-a chorar infantilmente em seu ombro. Diz, ainda, para esta não se dizer só, pois eles viverão juntos.
A narrativa se desloca da então luxuosa casa dos Charlier para "A rua dos conspiradores", onde um grupo revolucionário, composto por Langlois, Dixonne, Poulain e Pierre Dumaine, discute a revolta que liderarão no dia seguinte contra o Regente e a Milícia. Ao sair do quarto onde realizam a reunião, Pierre encontra Luciano, antigo companheiro do grupo. Por ter se aliado aos milicianos, Pierre o despreza, e Luciano sente-se humilhado e se vinga atirando em Pierre, matando-o.
Eva também confronta seu assassino antes de falecer. Apesar de não estar ciente de que André a envenenava, sabia que ele esperava sua morte para seduzir Lucette e convencê-la de se casarem, a fim unicamente de tomar o dote da irmã, assim como fez com ela mesma. Em meio a discussão, Eva sente-se mais fraca e desfalece.
Ao contrário de outras histórias, onde os personagens morrem e suas narrativas terminam, esta prossegue. Pierre e Eva não entendem que estão mortos, apenas tem em mente um endereço, a rua Laguenésia, e a necessidade urgente de encontrá-la. Lá, deparam-se com uma fila e "a casa interior", onde são atendidos (individualmente) e tomam consciência de suas mortes e os responsáveis por elas. Ao fazer tais constatações, Pierre permanece tranquilo. Para ele, o importante é que fez o que havia de fazer em vida - a organização da revolta. Seu objetivo havia sido cumprido. Eva, no entanto, fica atordoada. Sente-se impotente por nada poder fazer para salvar a irmã. O sentimento acentua-se ao testemunhar uma menininha sendo assaltada na rua e ao visitar o próprio quarto e ver André já agindo de acordo com seu plano. No local, encontra o falecido pai, que faz uma recomendação: não voltar mais lá, pois a aflição era inútil. Resignar-se era a única solução.
Enquanto isso, Pierre tem sua paz se esvaindo, pois, ao visitar o Palácio do Regente, o rapaz descobre que a revolta era não só conhecida, mas também esperada pelo próprio. No dia seguinte, todos os amigos e companheiros revolucionários de Pierre seriam massacrados pelas tropas milicianas. Pierre percebe, portanto, seu fracasso. Os outros mortos presentes no palácio acompanhavam a situação e regozijaram-se com o fato, pois, tal qual eles, Pierre via-se agora como um derrotado.
Os dois, abatidos, se encontram despropositadamente na rua. De início se estranham, mas depois conversam e se distraem. Pierre é cativado pela beleza de Eva, contudo se entristece por não tê-la conhecido em vida. A partir de então, ambos projetam várias situações que poderiam ter vivido: um almoço romântico com troca de palavras doces e apaixonadas, uma dança intensa, beijos, abraços... Pierre constata que "a morte vale mais que a vida". Um grande pesar cai sobre ambos nesse momento.
Contudo, eis que surge a chance de voltarem à vida. A senhora que controla o livro de mortes, declara: "Artigo 140: Se, em consequência de um erro unicamente imputável à direção, um homem e uma mulher, destinados um ao outro não se tenham encontrado em vida, poderão pedir e obter autorização de voltar à terra sob certas condições para aí poderem amar-se e viver a vida em comum de que tinham sido injustamente privados."
A primeira condição era concordarem com a proposta. Tal qual um casamento, ambos dizem "sim". Eles retornariam sem esquecer do que se passara enquanto mortos, e teriam vinte e quatro horas para se amarem completamente, o que lhes daria direito à continuação dessa nova vida humana.
Não previram, todavia, as particularidades de seus cotidianos e circunstâncias dessemelhantes, por vezes opostas, em que se encontravam. Pierre era líder da revolta, Eva era esposa de um miliciano. Pierre era pobre, Eva, abastada. O círculo social de Eva era composto por rivais do jovem revolucionário. Deste modo, com todos os contrastes explícitos, eles tentam viver o que haviam sonhado anteriormente; todavia, na medida em que os desejos se tornaram possíveis, perdeu-se a fantasia do impossível. E, mesmo com a possibilidade de uma outra existência, o casal se encontra aprisionado por suas (distintas) realidades. Outras prioridades surgem: o de evitar a revolta, de salvar a irmã... A vontade inicial de se amarem é encoberta por outras exigências. Por fim, o amor não é concretizado, e o casal morre novamente.
Apesar do término relativamente pessimista, o romance é concluído com uma colocação interessante dos protagonistas; pois, ainda que não tenham sido bem sucedidos, esses respondem a um casal, prestes a passar pelo mesmo que eles:
"- Experimentem - aconselha Pedro.
- Experimentem, apesar de tudo - murmura Eva."