Vanessa.Benko 10/09/2024
Sempre pensei que não existe memória coletiva, o que talvez seja uma forma de defesa da espécie humana
Ernesto Sabato nos conduz pela mente de Juan Pablo Castel, um pintor e assassino confesso que, desde a primeira frase, deixa claro seu crime: ele matou María Iribarne, a mulher que amava e, paradoxalmente, odiava. Mas, em vez de um típico romance policial, o autor nos entrega uma investigação íntima, uma autoinvestigação obsessiva que nos faz questionar até onde vai a racionalidade e onde começa a loucura.
Sabato nos convida a acompanhar um narrador que é, ao mesmo tempo, insuportável e fascinante. Castel, com sua vaidade exacerbada e uma postura de superioridade quase insuportável, fala diretamente ao leitor, tentando justificar suas ações e, de alguma forma, induzir-nos a enxergar o mundo através de sua lente distorcida. Ele nos dá permissão, inclusive, para desistirmos da leitura — uma demonstração clara de seu ego inflado e da crença de que ele é, de alguma forma, superior ao leitor comum. Isso poderia afastar alguns, mas para mim funcionou justamente ao contrário: o livro prende, provocando uma curiosidade quase mórbida de compreender a lógica por trás de sua insanidade.
É impossível ignorar o fluxo de consciência que permeia a narrativa de Castel. Ele frequentemente se desculpa por sua mania de justificar excessivamente e por cometer erros na narrativa, que ele poderia simplesmente ter apagado. É uma janela para sua ansiedade, sua incapacidade de se conectar genuinamente com os outros e seu medo profundo de parecer ridículo. Há momentos em que essa vulnerabilidade ressoa, quase como um reflexo de nossas próprias inseguranças, o que gera uma estranha conexão, ainda que temporária, com o leitor.
O relacionamento entre Castel e María é uma dança macabra de perguntas sem respostas. Os diálogos são, na verdade, monólogos disfarçados; Castel sempre está falando consigo mesmo, tentando encontrar em María um espelho de suas próprias ilusões e teorias. Ele tenta encaixar suas emoções em um quebra-cabeça racional, um exercício fútil que o leva ao abismo. Maria, por outro lado, permanece um enigma — uma ausência constante que talvez seja o maior tormento de Castel. Ele a culpa por sua própria desintegração, pela sua incapacidade de sentir algo além da obsessão.
A construção do personagem de Castel é, sem dúvida, um dos pontos altos do romance. Sabato cria um protagonista coerente em sua loucura e consistente em sua busca desesperada por sentido. Há uma espécie de horror na forma como ele racionaliza cada emoção, transformando sentimentos em equações frias. Sua dúvida constante em relação ao amor de María, seu ciúme corrosivo e suas ameaças de suicídio – todas atitudes que revelam a necessidade de ferir. Como o posfácio dessa edição bem explica, Castel não é um sujeito autônomo, mas um herói trágico, um diagnóstico doloroso de uma humanidade que, em meio a tantos avanços técnicos, descobre-se medíocre.
O livro, com seus capítulos curtos e diretos, é de uma leitura fluida e, ainda assim, profundamente densa. Cada página nos empurra mais fundo no túnel da mente de Castel, um espaço que se desdobra como um labirinto sombrio. À medida que avançamos, sentimos o peso de uma promessa nunca cumprida, que se transforma em uma ferida aberta, gerando instabilidade e culminando em catástrofe. Em última análise, o "Túnel" nos deixa com uma reflexão inquietante: até que ponto o isolamento emocional e a obsessão podem levar alguém?
Sabato constrói um retrato brilhante de um homem em completa desintegração: um insensato. E, ao virar a última página, talvez nos encontremos perguntando: quantas vezes também percorremos nossos próprios túneis, esperando, em vão, encontrar uma saída que nunca existiu?