gleicepcouto 18/06/2012Um mundo absurdamente originalhttp://murmuriospessoais.com/?p=3324
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Conheci a escritora norte-americana Rebecca Stead pelo formidável livro Amanhã Você Vai Entender (Intrínseca). Somente depois, fiquei sabendo que a Editora iD tinha lançado o primeiro livro da autora no Brasil: First Light. Claro que tinha que conferir, Rebecca me conquistou pela simpatia (confira entrevista aqui), mas principalmente por seus atributos como escritora.
Desta vez, Stead nos apresenta um mundo subterrâneo, logo abaixo do pólo ártico, onde Thea vive. Na verdade, é uma comunidade que teve que fugir da Inglaterra para se refugiar em meio ao gelo, buscando segurança e a não extinção de seu povo. Sem ver a luz do sol, eles vivem como qualquer outra sociedade, mas com certas adaptações e racionamento também: a bebida quente mais comum é a água de arroz, eles usam pele de animais para vestir devido ao frio absurdo, descobriram um modo de condensar o gelo sem que ele derreta, e tem cachorros como se fossem uma extensão de seus corpos: os Chikchu, que os acompanham durante toda vida.
Já na superfície, Peter, um garoto esperto está empolgado com a sua primeira viagem a Groenlândia com os pais. Seu pai, um professor e cientista (glaciologista) tem que estudar os efeitos do aquecimento global e pela primeira vez leva sua esposa (bióloga) e o filho para compartilhar desta aventura. O que Peter não fazia ideia é de que não estavam ali por acaso e muito menos que esses dois mundos tão diferentes se cruzariam de forma que mudariam a vida de todos, revelando um grande segredo.
O pai de Peter acampava durante semanas no gelo ártico, guiava veículos para neve e trenós puxados por cães, escalava paredes de gelo e disparava morteiros para afugentar ursos-polares. Ele já tinha comido foca crua, voado em helicópteros e caído em profundas rachaduras no gelo. Esse pai, Peter conhecia de histórias, muitas delas contadas por estudantes da pós-graduação que vinham para o jantar. Eles sempre comentavam sobre a vez em que o Dr. Solemn tinha agarrado alguém que quase tinha sido arremessado de um velho helicóptero sem porta ou sobre quando ele havia atirado na cabeça de um urso para salvar um dos cachorros. Era um pouco como conviver com Clark Kent sem nunca conhecer o Super-Homem.
Mais uma vez Rebecca Stead comprova ser, na minha opinião, uma das melhores autoras em escrever sobre o mundo infanto-juvenil. Suas crianças e jovens não são chatos, desmiolados, em crises irritantes: são apenas... crianças. Tem um pouquinho de drama, dúvidas e medos? Óbvio. Mas nada exagerado ou que fuja de sua realidade de... crianças. Stead conhece a cabeça, a linguagem, os trejeitos deles como ninguém - deixando os personagens verossímeis, mesmo criando um mundo absurdamente original.
Sim, original: um mundo por debaixo do gelo - ainda não tinha visto isso por aí. E a sociedade que ela inventou, bem delimitada, com suas reservas e lendas e crenças; conseguindo nos fazer imaginar que tal vida seria possível.
A narrativa de Rebecca é impecável, mesmo que percebamos alguns traços de iniciante – ainda assim é acima da média. Muitos autores com diversos livros nas costas não possuem a fluidez que ela tem. Ela intercala os pontos de vista de Peter e Thea, sem misturar as personalidades dos dois, preservando as características peculiares de cada ume. O mais interessante: você não tem um narrador preferido, não corre as páginas para chegar no outro ponto de vista, por exemplo. Saber dosar isso não é tarefa fácil.
O que senti também é que a autora podia ter terminado o livro um pouco antes do próprio final. Ficou muito redondinho, ela não quis arriscar e deixar algumas coisas em suspenso. E essa atitude até entendo quando paro para pensar, novamente, que este foi o primeiro livro dela. Completamente perdoável.
Há ensinamentos bacanas na história, mas nada do tipo Escola da Tia Teteca. Não é enfadonho, e se molda perfeitamente à trama, se tornando natural. Aprendi diversas coisas sobre aquecimento global, assim como acampamentos no meio da Groenlândia, como fazem para sobreviver naquele frio absurdo e o trabalho de cientistas medindo camadas de gelo, etc. Interessantíssimo.
O modo como as duas histórias se unem também é coeso, sem forçação de barra. Simplesmente acontece no tempo certo, tanto da história, quanto na vida dos personagens. As aventuras vividas por Thea e Peter, juntos ou separados, são de tirar o fôlego. Assim como os mistérios que Stead mantém ao longo da história, que, aos poucos, vamos desvendando com os personagens.
A única ressalva, que nada tem relação com a eficiência da obra, é a capa. É pavorosa. Certeza que inibiu alguns potenciais leitores de se deliciarem com o livro. Mas fora isso, a iD acertou na diagramação interna, realizada com capricho e detalhes, e na tradução bem feita.
Faça que nem Peter e vá além da superfície (capa) - não vai se arrepender quando encontrar bem escondido, no subterrâneo, uma trama diferente e inteligente. First Light esbanja conhecimento, bom humor, mistério, aventura e personagens reais em um mundo pouco explorado e irreal.
First Light
Autora: Rebecca Stead
Editora: iD
Ano: 2010
Páginas: 340
Valor: $40 a $50
Avaliação: Queria que meus futuros filhos fossem espertos como as crianças que a Rebecca cria em sua cabecinha, rs.