Luigi - Acrópole Revisitada 09/10/2023
Ao longo da história, o olhar dos adultos sobre as crianças mudou muito.
De adultos em miniatura que deveriam se casar tão logo chegassem à puberdade, passaram para seres que deveriam aproveitar ao máximo o momento efêmero com brincadeiras e diversões. Mais recentemente, uma super exposição nas redes sociais faz com que as crianças pareçam chegar à adolescência cada vez mais cedo. Isso cria pessoas “super antenadas”, mas emocionalmente imaturas.
Em muitos casos, crianças precisam amadurecer mais cedo por conta de inúmeros fatores: pobreza, trauma, questões familiares, entre outros. Nesse sentido, o esfacelamento paulatino de sua família e a falta de afetividade é um exemplo de situação que pode ter levado a personagem M, de Kramp, a amadurecer muito cedo.
O livro de Maria José Ferrada publicada pela Moinhos no Brasil em 2020 – em mais uma boa tradução de Silvia Massimini Félix -, traz essa narradora que alterna entre a ingenuidade e a maturidade precoce. Inteligente e observadora, narra uma parte de sua vida, ali pelo final da infância, em que ficou muito próxima do pai e passou a acompanhá-lo nas suas viagens de trabalho.
A mãe é uma pessoa distante e misteriosa, parecendo não se importar muito com a filha, além de também parecer desconectada do próprio marido. Ao mesmo tempo que parece depressiva e mergulhada em seu próprio mundo, também tem relações misteriosas que a filha descobre em determinado momento, parecendo apontar para um passado e um momento político do país em que vive.
Construída com toques biográficos da própria autora, M passa a ajudar o pai durante alguns dias no seu emprego. Ele é caixeiro-viajante e precisa visitar várias cidades para vender os produtos da marca Kramp, empresa para qual trabalha. O catálogo de artigos de serralheria que compõe o escopo da marca parece ser um guia, quase uma bíblia às avessas pela qual a menina descobre o mundo.
Com o desinteresse da mãe e a ligação crescente com o pai, M passa a faltar na escola para ser uma espécie de ajudante de caixeiro-viajante, fazendo “cara de pena” na frente dos possíveis compradores para que eles se compadeçam e comprem os produtos Kramp.
A presença da marca, que inclusive dá o título e a tônica do livro, parece uma crítica velada ao capital, em que grandes marcas dominam o imaginário das sociedades e das relações pessoais, enquanto a história e os direitos das pessoas são varridos para debaixo do tapete – explico essa questão mais à frente.
Sem exageros, podemos dizer que se trata de uma escrita saborosa e convidativa, daquelas que tecem uma narrativa que parece não prometer nada e entregar tudo. Com seu jeito despretensioso, M nos puxa pela mão para mostrar sua vida e nos apresentar sua própria visão do mundo e das coisas. É pelo olhar dela que sabemos de tudo o que se passa, sejam as coisas ditas às claras, sejam aquelas sugeridas sutilmente.
Parece faltar afeto na família. Já que sua mãe é distante, ela se aproxima do pai, que alterna entre o compreensível/afetuoso, à sua maneira, e o irresponsável. A menina M, aos oito anos de idade, além de deixar a escola para acompanhá-lo no trabalho, ainda fuma na frente do pai, que não diz nada a respeito – a capa do livro já nos antecipava isso, embora o efeito de estranhamento e incômodo não se perca.
Apesar de ter uma vida diferente do que se imagina e deseja para uma criança, a voz narrativa de M é totalmente verossímil. A autora consegue criar uma voz permeada por um olhar que faz jus à idade, sem infantilizar demais nem fazê-la uma adulta mirim – talvez sua experiência como escritora para crianças tenha ajudado nessa construção.
O livro então vai costurando esse distanciamento familiar com a descoberta do mundo pela narradora, enquanto, de maneira muito sutil, apresenta questões relacionadas à ditadura. O fotógrafo, amigo do seu pai, diz que quer fotografar fantasmas. Em um primeiro momento, nem a menina nem os leitores se tocam do que ele, de fato, quer dizer. À medida que o livro passa, entretanto, conseguimos visualizar, já que o livro se passa em um país latino que parece viver em uma estrutura controlada e vigiada.
É a partir do fotógrafo e, curiosamente, da mãe de M e seu passado misterioso que essa teia vai se tecendo. Em breve, algumas verdades serão desenterradas, enquanto M chega à conclusão de que a tônica da vida é estar sozinho/a.
Kramp é uma novela com certa delicadeza, parte verdadeira, parte falsa, que apresenta um mundo muito mais duro do que se imagina e muito pouco singelo para uma criança. M, apesar de remeter diretamente à Maria, autora, pode ser a representação de tantas meninas na nossa dura história latina.