Fabio Shiva 28/09/2022
A menor decisão que você toma pode gerar um banquete de consequências
Em 2019, ao passar pela Mansão dos Livros (projeto de doação de livros em Itapuã), deparei-me com esse exemplar, que fez meu coração bater mais rápido. Tratava-se de uma obra de Dennis Lehane, de quem eu já havia lido duas histórias incríveis, que geraram filmes igualmente interessantes: “Sobre Meninos e Lobos” (https://youtu.be/rW7n3PsFd8U) e “Ilha do Medo” (https://youtu.be/y3dalJDGmt0). Ao ler o título do livro que eu já levava para casa, senti um desfalecimento: “La Morte Non Dimentica” (“A Morte Não Esquece”) era uma edição italiana!
Mas não desanimei. Tempos atrás, encontrei pela bagatela de R$ 1 cada vários clássicos da literatura francesa no original em francês. Mesmo sem saber mais que duas ou três palavras de francês na época, não resisti à promoção, e já fiz valer ao menos três reais de meu investimento inicial.
Pensei que nada impedia que eu repetisse a façanha, agora com um livro em italiano (que saiu de graça, ainda por cima!). O isolamento forçado pela pandemia acabou sendo uma boa oportunidade de estudar esse belo irmão mais velho do português. Estudar, bem entendido, do jeito que eu mais amo: lendo livros!
Não quis encarar logo de cara o Dennis Lehane, para poder saborear melhor a leitura depois de ter adquirido alguns rudimentos de italiano. Assim foi que li primeiro “L’Ufficiale e La Spia” (“O Oficial e o Espião”), de Robert Harris (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2021/04/o-oficial-e-o-espiao-robert-harris.html) e “La Verità Su Bébé Donge” (aparentemente ainda sem versão em português), de Georges Simenon (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2021/09/la-verita-su-bebe-donge-georges-simenon.html).
Afinal me senti pronto para ler “La Morte Non Dimentica”. E foi só então que tive a curiosidade de saber qual era o título original da obra em inglês: “Mystic River”. Pera lá: mas esse é justamente o livro mais famoso de Lehane, que foi traduzido em português como… “Sobre Meninos e Lobos”! Eu não somente já li essa história, como perdi a conta do número de vezes que vi o filme, magistralmente dirigido por Clint Eastwood e com Sean Penn, Tim Robbins e Kevin Bacon nos papéis principais.
Se eu soubesse desde o início que esse era o livro do Dennis Lehane que eu tinha em mãos, o mais provável é que não me sentisse motivado a aprender italiano só para ler novamente. Contudo foi uma experiência maravilhosa retornar a uma história que admiro tanto, agora em um idioma no qual estou ainda engatinhando. Tudo considerado, só posso dizer que foi um ganho esplêndido começar a estudar uma nova língua, ainda que movido pelo desejo de ler mais um livro de um de meus autores favoritos!
Demorei contando isso tudo porque acho que tem a ver com o ponto central de “Mystic River”, que é muito bem sintetizado na fala de um dos personagens:
“Você já pensou em como a menor decisão que você toma pode mudar o rumo de sua vida?”
Vejo uma continuidade e uma expansão dessa questão na célebre frase de Robert Louis Stevenson:
“Todo mundo mais cedo ou mais tarde senta-se para um banquete de consequências.”
Toda ação gera uma reação. Essa é, fundamentalmente, a Lei do Karma, conceito da Filosofia Sankhya que é tão mal compreendido em nossos dias. Dennis Lehane é quase didático em sua alegoria da Lei do Karma, o que ajuda a tornar “Mystic River” um exemplo sublime da Arte em seu patamar mais elevado, ao conciliar entretenimento, prazer estético e convite à transcendência.
Uma sincronicidade digna de nota é que pensei muito em “Mystic River” quando estava lendo “Sobre a Escrita”, de Stephen King (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2022/05/as-preciosas-e-as-vezes-perigosas-dicas.html). Isso porque King foi bastante crítico aos livros escritos a partir do roteiro (plot), louvando uma forma de escrita mais intuitiva (que ele compara a escavar um fóssil). Pois bem, uma trama magistral como a de “Mystic River”, onde cada pequena peça da história está conectada com as demais, é uma das mais perfeitas demonstrações do bom uso do roteiro, e jamais poderia ter sido escrita da forma sugerida em “Sobre a Escrita”. O que mostra que, em se tratando da arte e do ofício de escrever, ninguém pode achar que disse a palavra definitiva.
Encerro, portanto, prestando a minha reverência à fina arquitetura de “Mystic River”, que chega a evocar em seu poder de catarse algumas passagens do “Mahabharata”, a mãe de todas as histórias. Sou profundamente grato por essa segunda leitura, que renova e reforça a minha vocação de escritor.
Link da primeira resenha de “Sobre Meninos e Lobos”, de Dennis Lehane:
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2012/05/sobre-meninos-e-lobos-dennis-lehane.html
Link da segunda resenha:
https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2022/09/a-menor-decisao-que-voce-toma-pode.html
site: https://www.instagram.com/prosaepoesiadefabioshiva/