carlosmanoelt 21/05/2024
?Neutro artesanato de vida.?
?Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim. Não sei se estou entendendo o que falo, estou sentindo - e receio muito o sentir, pois sentir é apenas um dos estilos de ser. No entanto atravessarei o mormaço estupefato que se incha do nada, e terei que entender o neutro com o sentir.?
O que significaria G.H.? Manoel da Costa interpretou como ?gênero humano?, a busca por si dentro de si. Desse modo, ?A paixão segundo G.H.? poderia ser resumido como um livro sobre uma mulher que tem uma crise existencial após se deparar com uma barata, mas ele vai muito além disso. A barata, personagem secundária da trama, é usada por Clarice para dar início ao fluxo de consciência da personagem principal. É a partir deste acontecimento que G.H. começa a refletir sobre a sua existência, após demitir sua empregada doméstica, Janair, e ficar sozinha em sua cobertura.
Ao exercer o que parece ser uma tarefa simples e comum, e mais do que rotineira para qualquer um, a protagonista desencadeia uma série de reflexões, enquanto também se depara com a insignificância que a funcionária tinha para ela até o momento. Sem demais componentes atuando, a narrativa é uma imersão no seu próprio pensar, em que a solidão da atividade desempenhada leva a um diálogo com si própria. A estrutura textual evidencia o fluxo de pensamento, com capítulos que não possuem títulos ou marcações numéricas, mas se iniciam com a mesma sentença que encerrou o anterior, ilustrando sublimemente a constância da reflexão humana. Apesar de não trazer nenhum personagem dialogável, se precisássemos eleger uma espécie de antagonista em ?A paixão segundo G.H.?, com certeza, seria a barata. Ao arrumar o armário do quarto, a protagonista se depara com o inseto, e, no comum ato de esmagá-la, aprofunda-se ainda mais em uma viagem que transcende o tempo e o espaço de sua memória.
O clímax se dá de forma um tanto inesperada, quando, ao inseto expelir um líquido branco, a narradora decide engoli-lo, entrando em total estado de epifania. Ingerir um dos bichos mais asquerosos presentes na superfície terrestre causa uma autorevelação, em um ato perfeitamente simbólico. A mesma figura da barata também é subentendidamente retratada em ?A Metamorfose? (1915), de Franz Kafka, que aborda sobre a perda da dignidade humana e caminha de mãos dadas com o presente romance, tendo até seu título ressoado nas entrelinhas. ?É uma metamorfose em que eu perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu ? só tenho o que eu sou?.
Clarice Lispector investiga com maestria o lado humano introspectivo. Faz isso através do contato de G.H. com a barata, mostrando as preocupações emocionais da personagem, que não se reconhece mais. Ao buscar dentro de si quem verdadeiramente é, entra em reflexões. O livro é principalmente sobre se sentir inquieto em sua própria pele. Sem um desfecho necessário para uma obra que percorre o mais íntimo do ser humano sem nem precisar sair das paredes de um apartamento, a protagonista não alcança uma devida conclusão. ?A paixão segundo G.H.? tem como ponto de chegada o mesmo de sua partida, com questionamentos sem resposta para essa personagem sem rosto e sem nome, na forma mais poética que alguém poderia pensar para retratar a essência daqueles de alma já formada. Ainda bem que tivemos uma Clarice Lispector para fazer isso, um passeio por nós mesmos.