A demência do tempo (memórias da pandemia)

A demência do tempo (memórias da pandemia) Lúcio Autran




Resenhas - A demência do tempo (memórias da pandemia)


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Krishnamurti 24/03/2024

A demência do tempo (memórias da pandemia)
A recente publicação pela editora Texto Território do livro “A demência do tempo (memórias da pandemia)”, poesia/prosa do escritor Lúcio Autran, leva o leitor a reflexões que unem dois acontecimentos quase simultâneos na história brasileira. A pandemia da Covid-19 no mundo, e a ascensão ao poder, em nossa república, de um tempo de desmandos e demência política que nos levaram a uma das mais graves crises éticas de nossa história. A pandemia ceifou somente no Brasil, entre os anos de 2020/2022, segundo dados oficiais, 710.966 vidas. Nesse mesmo período sofremos verdadeiro eclipse fascista na democracia brasileira que durou de 1.º de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 2022 e quase volta a afundar o país em mais uma ditadura. Nesse nosso tempo de memória curtíssima é imprescindível lembrar e repetir que boa parte daqueles óbitos poderia ter sido evitada não fosse a demência verdadeiramente assassina que dominou o Poder Executivo ao minimizar a tragédia, e por cima, debochar da urgência de vacinação que poderia ter poupado muitas vidas. Aflora da obra do Sr. Autran, é verdade, vívido sentimento de revolta. dor e luto expresso e circunscrito àquela realidade política vivida então. Ocorrências que, repetimos, não só convém lembrar, como guardar vivamente na memória.

Poema Os triunfos da morte – p. 92
Desenhamos seu rosto desde a Idade da Pedra / escrevendo o nosso medo nas cavernas do Nada. / Porém, maior é seu triunfo quando somos trevas / ceifando com sua foice e sua face sem palavras.
Em cada época ela recria novas lâminas e lepras, / nova ânima, se transforma em círculos de silêncio, / se espalha, até recompor sua face única, imutável, / presente em cada gesto desenhado pelo inevitável.
Em meu tempo traz esses olhos baços da boçalidade / refez-se eterna novamente e convicta grita estultices. / É o Triunfo da Morte, numa Idade ainda sem nome, / porque não existe pior forma de morte que a burrice

Há, todavia na obra, certa inclinação poética que parece nos levar a uma ampliação da compreensão da realidade social desses anos recentes e tenebrosos. Para o historiador francês Jacques Le Goff, o imaginário é fenômeno que faz parte do coletivo e de toda as relações sociais e históricas, influenciando o modo de enxergar o mundo, ou seja; está presente tanto no passado como também na cultura dos pensamentos, nas ações, nas palavras, no sentido do funcionamento da sociedade de nossa época. Ao voltar-se para situações mais definidas: um determinado padrão de representações, um repertório de símbolos e imagens com a sua correspondente interação na vida social e política, o autor logra extrair do caos e das ruínas alguma lição, algum aprendizado. Sabemos cada vez mais, que a vida do homem e das sociedades, está ligada tanto às imagens, quanto a realidades mais palpáveis. As imagens que a obra evoca, englobam também o universo das imagens mentais, imagens coletivas, amassadas pelas vicissitudes da história, que formam-se, modificam-se, transformam-se. Exprimem-se em palavras e em temas: o tempo esse “idiota surdo [que] passa silencioso / nos atirando mortos ao rosto. / E sarcástico sussurra nossa finitude”. A solidão humana, os seres transformados em frias estatística de critérios pseudocientíficos, o inferno dantesco em que querem transformar o mundo, imagens mitológicas, a corrupção: “o ouro sempre conspira / e faz tratos com a morte / o ouro que edita decretos”, as impossibilidades de verbalizar tanta dor e sofrimento e afinal, a esperança!

O imaginário para a história, está como o poder para a política. São inerentes ao ser humano. Seu papel é de nortear o homem no espaço e no tempo, dando-lhe a possibilidade de compreender a própria realidade através dos símbolos produzidos. Com efeito. alimenta o homem e fá-lo agir. É fenômeno coletivo, social e histórico”. Ana Chiara, que assina belíssimo texto de posfácio a certa altura escreve: “O futuro chegou: o que nos parecia distante, longínquo, como um cenário de filme de ficção científica integrou-se à vida cotidiana como máscara mortuária. O homem parece ter atingido níveis impensáveis de sofisticação tecnológica, como podemos conferir no campo da ciência, mas ao mesmo tempo enfrenta as mais terríveis ameaças da miséria social e espiritual”. Este nosso preciso momento, não apenas no Brasil, mas no mundo. Tristezas imensas, aflições terríveis, violências inomináveis de um lado, do outro, ausência de sentido, de orientação. O que conhecemos como ética, a cada dia, vai se tornando mera questão de valores hedonistas e pessoais, não de referências. Não há mais ligações metafísicas, portanto, a razão do homem vai a cada dia retroagindo para uma razão que serve apenas a instintos. É nesse sentido que pergunta-se Ana Chiara: “como fazer que do tempo vazio do medo e da doença, emerjam as forças capazes de superar duas calamidades que atingiram o país amortalhado, amordaçado pelo infausto de duas monstruosidades: a pandemia e o pandêmico?”

Como? Se a ideia do ‘contágio’ se tornou entre nós, irrespirável. Contagio que fermenta outras enfermidades letais. Referimo-nos aqui, para maior clareza, não apenas ao contágio trazido pelo imponderável das moléstias físicas, mas também, e com que ímpeto, o contágio das atitudes dementes das bestas-feras fascistas, as bancadas da bala no Congresso Nacional, o ódio, a violência pura e simples, a intolerância política e as divisões estéreis em que estamos submersos. “Um planeta / sitiado pelo invisível // e um país / pela demência” p. 27.

Após a leitura de uma obra tão instigante como é “A demência do tempo”, o leitor mais atento e tocado de angustia, ao lançar um último olhar à capa, divisa fragmento do quadro “Cristo no limbo” de autoria do pintor Hieronymus Bosch que viveu em Flandres em plena efervescência do Renascimento. É obra de 1575, e o detalhe em destaque revela a imagem perturbadora e caótica de um verdadeiro caos existencial. Nesta pintura encontramos demônios, pessoas matando umas às outras, e desatinos de toda ordem. O detalhe reproduzido mostra inclusive demônios expandindo o inferno para que possa conter mais almas.

O saldo para o leitor atento não é, por certo, de um niilismo irremediável como a princípio se poderia supor, o saldo positivo existe, perdura e consiste em acreditar no poder da simbologia literária, no desenvolvimento de um imaginário coletivo positivo, que nos ajude a interpretar nossa realidade. A buscar respostas... mesmo tendo em vista o nosso passado de erros, podemos sim, encontrar a ‘salvação’ e um verdadeiro significado da existência, através de uma jornada de autodescoberta tornando-nos definitivamente autoconscientes e responsáveis por nossas ações. Aí nos parece a saída. Assumir a responsabilidade em construir uma sociedade melhor do que este limbo miserável em que estamos todos mergulhados... Este afinal, o “entreaberto à espera” em nossos destinos para que afinal possamos vivenciar o que lemos em “O aprendizado do tempo”. P.99.

“Um dia, recuperada a sanidade do tempo, num choro contido, de jeito a não o envergonhar, verei outra vez meu filho crescer sem clausuras do medo. Seu corpo expandindo-se no espaço no traço mais que perfeito da geometria de um futuro sem os riscos do convívio.

Cansados da demência dos dias, deitados em toalhas imaginárias que estenderemos em manhãs imaginadas na grama da esperança recomposta, reaprenderemos a comer o pão urgente do cotidiano em liberdade vivido.”

Livro: “A demência do tempo (Memórias da pandemia)” – Poesia/Prosa de Lúcio Autran, Editora Texto Território – Rio de Janeiro / RJ, 2023, 124p. ISBN 978-85-65375-74-0.

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