letscia 28/05/2024
60 (2024) Ele, com três letras e E maiúsculo.
"Era um cachecol, com o distintivo padrão quadriculado em tons de cinza e azul escuro, exatamente igual ao usado pela minha amiga lhama. Permaneci ali, fitando-o em um silêncio contemplativo por um momento prolongado, questionando-me: seria o cachecol da lhama ou seria o meu?"
Os contos dessa coletânea são excelentes, todos com reviravoltas surpreendentes que dão o toque final à narrativa habilmente construída pelo autor.
Em "A Garota da Cafeteria", um homem em um estado reflexivo é surpreendido por uma moça que interrompe suas divagações, invade seu espaço pessoal e comete o erro de sentar-se à sua mesa. Ele a descreve como uma ruiva aparentemente natural de comportamento estranho e alma supostamente antiga. É um conto divertido, com um plot twist inesperado e cômico.
Em "À Procura da Pomba Perfeita", comecei a suspeitar que houvessem câmeras escondidas me vigiando. Não sou Maria Emília, mas compreendo perfeitamente a busca pela perfeição dominante na sociedade contemporânea. Uma menina de dez anos procura retratar a pomba perfeita em um desenho perfeito. Seu trabalho começa com uma acirrada seleção e culmina com a expectativa de aprovação. Esse é um conto que aquece o coração do leitor. Quantos de nós não funcionamos um pouco como essa criança?
Em "Cem Lhamas de Solidão", temos várias referências a Gabriel Garcia Marquez e um protagonista metade doido, metade incrédulo, que conversa com uma lhama. É um conto muito louco e bem escrito, não consegui deixar de pensar que a lhama era, na verdade, um duplo dele.
Em "Driving My Cat", um homem decide viajar de carro com seu gato preto, que após o nascimento de três filhos acabou sendo ignorado no lar. Genuinamente, não esperava pelo plot twist final. Passei a pensar que o gato era tão ignorado que ninguém notou algo tão grande quanto o que aconteceu - sem spoilers por aqui - me surpreendeu mais ainda que ele nem mesmo tivesse um nome.
Em "Gratidão", um pensamento meu foi muito enfatizado. É sempre terrível quando uma palavra ou expressão batida vira parte do vocabulário popular e temos que aguentar meses de repetições desnecessárias. Isso piora quando passam a usá-la incorretamente, como o tenebroso "assertivo". "Gratidão" é um conto bem-humorado e engraçado.
Em "In Love no Uber", um homem percebe que o carro selecionado para levá-lo é o mesmo Peugeot 208 que ele tinha. Ao perceber que sua mulher, Roberta, virou motorista na plataforma - e que usa o carro que eles compartilham nas corridas - o protagonista é tomado pela birra. É um conto inusitado, sobre um homem que se apaixona pela própria esposa, outrora ignorada e, de certa forma, menosprezada.
Em "Pêtit Gateau e Soldadinhos de Chumbo", o protagonista está em um avião esperando do lado de fora de um sanitário vazio, certo de que havia uma mulher ali dentro. Totalmente alheio aos detalhes, a coisa fica ainda mais absurda quando seu pai lhe faz uma revelação que o faz pensar sobre as lacunas de sua memória. O protagonista, além de alheio, é distraído ou enganado - e sim, minha segunda teoria é que tiraram o dia para fazê-lo entrar em crise existencial, ou seria tudo um sonho?
Em "Reflexões Gasosas", um homem com Transtorno Obsessivo Compulsivo precisa lidar com suas ansiedades. Ele é o protótipo de trabalhador perfeito para um empresário, mas nunca chegou muito longe devido à cautela de não sonhar alto demais. As reflexões do personagem servem mais como reflexão para o leitor, pois ele, nunca alcançando respostas satisfatórias, dá uma aula de como não viver.
Em "Romance entre Morcegos", temos uma chata exigente e um homem revolucionário. Tentando sair da monotonia, Sarah segue os conselhos de sua amiga e entra em um aplicativo de namoro. Ela encontra o cara perfeito, que atinge todos os requisitos, mas que é apaixonado pelo Batman. Em suma, José Cláudio não entende a rejeição e Sarah provavelmente vai morrer sozinha. Haha. A história é muito boa e com ótimas referências.
Em "Siris de Sobremesa", Oswaldo, um pescador, erra gravemente ao ser muito gentil com um escritor intenso, que desejava se alimentar de comida japonesa e, sem querer/querendo, acompanha todas as etapas do processo, desde a pesca até a sobremesa. Achei impressionante a forma como ele não entende sinais.
Em "Um Homem Sentado no Meu Sofá" - meu conto preferido do livro - um ermitão magicamente aparece no sofá do protagonista com uma revista de palavras cruzadas. Eles desenvolvem uma forte amizade e o ermitão torna-se uma figura paterna para o personagem. Como todas as outras vezes dessa experiência nômade, o ermitão magicamente é enviado para outro sofá, mas ainda assim, deixa sua marca na vida do protagonista. Desde o início do texto, sabemos que ele iria embora, mas a sensação de perda é compartilhada com o leitor de forma arrebatadora.
Trata-se de uma história impressionante, ao mesmo tempo identificável e fantasiosa. A obra superou minhas expectativas e espero que muitas pessoas leiam esse lançamento maravilhoso. Fiz questão de comentar conto por conto, pois cada um trouxe uma mensagem linda. Gostaria de ter dito mais, mas tenho plena consciência de que já ficou grande. Encerro aqui, mas antes, gostaria de deixar um agradecimento.
Gratidão por esse livro incrível, Will. Seu livro é uma obra-prima que merece uma grande moldura dourada.