Val 22/03/2024
Estrela da Manhã traz luz ou escuridão?
Estrela da Manhã tem início num crepúsculo. Familiar, poético e terno. É o mais recente romance do premiado norueguês Karl Ove Knausgård. Mas nem tudo é rotina simples e plácida como aparenta. Algo surpreendente vai acontecer. E com essas expectativas o autor nos conduz pelas histórias de nove protagonistas em Bergen - a mais bela cidade de fiordes da Noruega -, arrastando, numa leitura agradável, o fantasma da finitude humana.
Arne está em férias caótica com sua família e Knausgård explora magistralmente o relacionamento deles e ainda acrescenta amigos inquietantes e uma bebedeira assustadora antes do clímax interrompido. Já a pastora Kathrine, abordada frequentemente por um estranho, põe em xeque não só questões bíblicas que abordam sacrifícios e mortes como, repentinamente, seu próprio casamento.
Na terceira história, Emil comete um erro que o persegue pela noite adentro, quando, após o ensaio de sua banda, algo inacreditável, como ocorreu com Arne na primeira história, acontece com ele. Já Iselin surge como uma rica protagonista na história seguinte, brindando-nos com inúmeros fatores psicológicos, provocando provavelmente muitos leitores a refletirem sobre seus relacionamentos.
Solveig, a enfermeira que se preocupa na assistência não só dos pacientes, mas também de seus familiares conduz a história seguinte. Aqui Knausgård coloca-nos à frente de experiências de vida e morte para reflexão do que nos é mais importante, mesmo vivendo numa área rural. E aqui o autor retoma a segunda história, numa sequência de intermitências das histórias tecendo o início de uma malha de enredo. E, então, a pastora Kathrine continua com suas dúvidas reais e existenciais e, com isso, surge a maior de todas as dúvidas.
E, na história seguinte, introduz o jornalista Jostein, com uma severa crítica aos artistas pretensiosos. É um sujeito inconsequente em tudo que faz na vida, seja pessoal ou profissional, que consegue manter-nos num suspense envolvente, apesar de extremamente vulgar. Turid, sua esposa, é a protagonista da história seguinte, como cuidadora de deficientes físicos e mentais numa asilo. E sua vida se complica quando ela se descuida.
Arne volta à cena para descobrir que sofreu um acidente; que sua esposa estava em crise e que havia um animal estranho em sua casa e um gato decapitado na da sua mulher. Kathrine vê no mercado o homem que havia sepultado naquele dia, enquanto seu marido acha que ela tem um amante. Já Iselin fica às voltas com um intruso e acha que é mais uma visão. O jornalista Jostein consegue uma grande matéria e sua esposa Turid está numa enrascada aterrorizante.
Egil, o amigo de Arne da primeira narrativa, constitui-se no protagonista da oitava e o mais rico personagem deste livro. Knausgård consegue torná-lo um ser único com múltiplas personalidades, incoerente na retrospectiva de vida, mas absolutamente coerente no momento da história. Enfrenta toda uma tempestade de pensamentos sobre fé e liberdade, desembocando na filosofia. É a história mais longa e mais pesada pelos inúmeros conceitos em discussão, e nela inicia-se um elo com a pastora Kathrine.
Fatos estranhos vão aparecendo progressivamente nas histórias: calor intenso, alterações comportamentais de pessoas e animais, sons e uivos impressionantes, um morto-vivo, enfim, alterações de toda ordem aumentam subliminarmente as expectativas de suspense e terror do romance.
A temática familiar em todas as dimensões é abordada nesta obra, numa exuberância de situações do cotidiano em casa, no trabalho, na escola e na sociedade. Tudo num contexto contemporâneo e farto em citações musicais, dos clássicos aos modernos, onde convivem geralmente três gerações e seus cuidados e conflitos.
Knausgård coloca um liame de fantástico atravessando todo o enredo, como uma sombra que se esparrama nas problemáticas dos diversos protagonistas, os quais, na essência, apresentam os mesmos problemas, experiências e características de inúmeros leitores.
Dramas existenciais são profundamente analisados num longo ensaio sobre a morte incrustado nas histórias; e um longo devaneio de um personagem em coma traz a fantasia como seu exemplo prático.
Estrela da Manhã é o que Jesus se autodenominou ou é o Diabo descrito no Livro de Isaías? Leia este livro e descubra. Vale a pena.
Valdemir Martins
21.03.2024
site: https://contracapaladob.blogspot.com/