Charleees 07/05/2024
Na primeira parte DESCOLONIZAÇÃO E RELACIONAMENTOS, Geni traz um estudo histórico maravilhoso de como os povos indígenas viviam relacionamentos não monogâmicos sem se importar com uma 'moral' que não existia para eles, essa só veio a existir com a chegada dos colonos e dos Jesuítas que lideravam missões de evangelizar e trazer os nativos para o cristianismo.
A todo momento ela vai fazendo paralelos de como os indígenas veem os relacionamentos assim como veem a relação com a natureza: de liberdade, de não ter posses sobre a terra, de ver a natureza como um igual.
"Não somos donos da terra, somos a terra"
- Casé Tupinambá
Outros assuntos tratados nesse capítulo é como a monogamia é tratada juridicamente no país que se diz laico, mas proibe a bigamia baseado em conceitos cristãos, mesmo sem dizer isso claramente, o direito ao divórcio que só se fez presente a partir de 1988 com a promulgação da Constituição. Que só em 2005 o adultério deixou de ser crime previsto no Código Penal e como a grande maioria das pessoas ainda o veem como pecado, também com base em preceitos cristãos. E como as violências misóginas, o feminicídio, por exemplo, está atrelada a monogamia, quando principalmente o homem passa a ver a mulher como sua posse e ao não aceitar o fim dos relacionamentos se ver no direito de agredir e mat4r na maior parte dos casos suas ex-parceiras.
E de como essa ideia que querem nos empurrar que a não Monogamia é algo recente é uma falácia, pois os nativos indígenas viviam relações não monogâmicas muito antes da invasão colonialista a estas terras e a nenhum deles isso soava como ofensivo ou ia contra a moral.
O que se vê hoje em dia são mais pessoas dispostas a dialogar sobre o tema, colocando-o em evidência.
Na segunda parte do livro, DESMESTIFICANDO A NÃO MONOGAMIA, ela começa mostrando que termos como poligamia, poliamor e amor livre não traduzem a mesma ideologia. Quando a gente fala em monogamia e poligamia temos a ideia errônea de associarmos esses termos a quantidade de pessoas no relacionamento e não é bem assim. Na não monogamia, alguém que queira se relacionar com apenas uma pessoa, tem o direito de fazê-lo, mas isso diz respeito somente a si mesmo.
E mesmo os monogâmicos têm desvirtuado o sentido original e restrito da palavra mono (um) gamia (casamento), uma vez que há pessoas que tenham tido mais de um casamento ao longo da vida. Isso seria ser uma pessoa monogâmica?
Uma indagação muito boa que ela joga, diz respeito às relações: "por que, em geral, apenas as relações nas quais há a presença de vínculo sexual e/ou romântico são consideradas relações? Não são também relações amorosas outras tantas que podemos ter sem essa centralidade sexual e romântica?" questiona a autora.
Logo, em um sentido mais amplo, todo mundo que ama mais de uma pessoa ao mesmo tempo em sua vida, quer esse amor envolva ou não práticas sexuais, poderia ser descrito como poliamoroso, considerando que o amor vai além da dimensão romântica e/ou sexual.
Se temos pessoas que nos amam, nos apoiam e nos fortalecem, não estamos solteiras/sozinhas.
Na monogamia as amizades são o plano B do amor, o estepe, o complemento. É preciso desmantelar essa hierarquia.
Só consigo me sentir amado se demonstrarem desejo sexual por mim? Só consigo intimidade através do sexo? Quais companhias invisibilizo quando me digo só (solteiro/sozinho)? Quem me inspira paixão e encantamento?
É preciso nos questionarmos.
Com base no livro bíblico de 1 Coríntios 7:4, Geni mostra que a monogamia é uma orientação cujas bases vem diretamente do cristianismo. Ela diz sobre o direito ao corpo.
Se monogamia fosse a decisão PESSOAL de se relacionar com apenas uma pessoa, não chamariam de traição quando a outra decide estar com outras.
A monogamia é um contrato de exclusividade sexual.
Mas, e se foi acordado, combinado?
Geni pergunta "tudo que combinamos é ético e válido? Será que é saudável terceirizarmos nosso consentimento em nome de um combinado?" Será que não estamos sendo levados por uma pressão global que prega que a monogamia é a única maneira certa de se relacionar?
Ser não monogâmico significa que a pessoa não terceiriza decisões sobre seu corpo, de maneira que ela pode usar sua liberdade de escolha inclusive para não se relacionar com ninguém.
Não monogamia é uma porta aberta para entrada de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) no relacionamento.
Será?
Estudos mostram que nos últimos 10 anos (2009-2019) houve um aumento de 1.370% de ISTs na população cis-heterossexual e que é no âmbito relações de namoro/casamento que essa disseminação vem aumentando.
A traição está presente em 70% das relações monogâmicas brasileiras.
Na terceira e última parte do livro OS DESAFIOS DA DESCONSTRUÇÃO, ACOLHENDO INSEGURANÇAS E ANGÚSTIAS, Geni traz um outro desafio para o leitor que é lidar com a não monogamia na prática. Ela explica que o caminho da descolonização precisa ter sempre em perspectiva o acolhimento das nossas vulnerabilidades. Pessoas não monogâmicas não nascem com uma iluminação especial, um "gene" que torna tudo mais fácil, ao contrário, temos os mesmos desafios de lidar com ciúmes, insegurança e angústias diversas. A diferença é que não impedimos a autonomia do outro como forma de aplacar nossos medos. Buscamos não culpar e moralizar o outro pelo que nós sentimos.
No amor romântico, a promessa é a de que tudo seja suprido por uma única pessoa, seja para dar sentido à vida, seja para ser a única fonte a ser demandada para tudo. Assim como a terra, que, quando abusivamente explorada, se torna estéril, o amor também seca quando se toma dele toda gota.
No tópico acolhendo a singularidade, Geni fala sobre atentarmos para o modo como somos amados numa relação é fundamental, mas ser amado de maneira saudável não significa ser amado do mesmo jeito que amamos. Devemos celebrar as diferenças que nos constituem como a parte mais bonita dos vínculos amorosos.
Existem infinitas formas de demonstrar cuidado, afeto, carinho, generosidade e gentileza. Que tenhamos criatividade para construí-las.
Que a promessa de exclusividade não garante cuidado, afeto e nem a própria exclusividade. A não monogamia nos mostra que confiança e lealdade não serão acessadas pela promessa de exclusividade e que nossas experimentações não monogâmicas não torna a vida sem problemas, sem questões ou dificuldades, pelo contrário, outras questões vão surgindo.
Que não é porque não acreditamos em alma gêmea que não vamos caminhar juntos, de mãos dadas com as falhas, faltas, solidões e o que mais transbordar dos encontros que nos sustentam no mundo.
Ao final do livro, Geni nos dá um abraço com suas palavras ao dizer: "em tantos séculos de colonização, é preciso que reconheçamos humildemente nossa pequenez. Não damos conta de tudo nem de todos, fazemos o possível e isso já é tanto!"
A artesania dos afetos, desconstruir o que a monocultura nos ensina o que as religiões pregam sobre monogamia há tantos séculos não é fácil, mas pode e deve ser uma delícia.
? Livro 06 de 2024