Erich 12/04/2024
Um épico
Li a edição do Clube de Literatura Clássica (do mesmo tradutor). A saga é maravilhosa (apesar de ser fácil se perder um pouco com os nomes). Apesar do tradutor avisar na introdução ao livro que poderia ser uma leitura um pouco complicada, senti durante a leitura que já vi algo similar a isso antes: J. R. R. Tolkien. Acredito que todo aquele que gosta do Silmarillion, principalmente da tradução mais fiel ao estilo do Tolkien feita pelo Reinaldo José Lopes, irão também gostar desta obra.
A saga de Njáll é uma obra sem autor definido e que não se preocupa com "spoiler" (coisa que encontramos em alguns textos antigos, que já anunciam de início fatos que ocorrerão depois). Não se prenda também a "Njáll" pois a saga não consiste em acompanhar a história deste personagem (que na minha versão só aparece na página 121), mas sim acompanhar histórias de antes e depois da vida dele.
(Detalhe importante, no que escrevo abaixo vou usar letras normais. Assim, o caracter "þ" usarei como "th" mesmo, e os caracter especial ð, "edh", utilizarei "d" mesmo)
De certo modo existem alguns pontos cruciais que vão norteando a obra (e não necessariamente capitei todos nesta leitura)
Quando escrevi minha resenha no goodreads comecei falando da intrigas, mas vou deixar aqui pro fim pois tem alguns spoilers.
Vou comentar sobre alguns outros aspectos: a presença da religião, a sociedade islandesa e o tom de épico presente.
- O épico. Vemos ao longo da obra vários momentos onde temos um grande personagem/heroi com ações e força que parecem sobre humanas. Temos descrições fantasticas, como mover-se em tal velocidade que o inimigo mal enxerga seus movimentos. Acredito que essas descrições atingem seu ápice com Gunnar Hámundarson e suas batalhas. Ele sempre se mostra capaz de, sozinho, sobrepujar uma grande quantidade de adversários. Não temos isto somente com ele, Thorgeirr Skorargeirr (página 293) também é descrito como extremamente poderoso na família de Njáll.
- Sociedade islandesa. O que mais me chamou atenção aqui foi a maneira como eles resolvem "dívidas de sangue", os assasinatos entre famílias. Não existe de fato um julgamento de certo/errado ou uma busca por justiça no sentido mais moderno onde praticar assassinato é um ato condenável. Temos na verdade uma constante disputa legal a respeito das coisas, onde as mortes são compensadas com acordos financeiros. E vemos, com a evolução da obra, uma complexificação dos casos. O julgamento ao fim da obra, por exemplo, se torna uam gigantesca disputa legal. Onde o que estava em jogo não era a verdade mas sim a forma como a acusação e de defesa seriam apresentadas. A forma se mostra superior à realidade. Pontuo aqui que mesmo com a mudança de religião a organização social não parece ter mudado nada. Como se o impacto do cristianismo fosse mínimo.
- Religião. Começamos com uma sociedade politeista que tinha os deuses nórdicos como referência e que inclusive utiliza citações referentes a esta mitologia em experiencias e contatos diários. Chegamos a um momento em que o cristianismo chega à Islândia (e não foi uma chegada pacífica, naturalmente) e vemos a troca da mitologia nórdica pela mitologia cristã, a troca da referência aos deuses pela referência a um deus. Um ponto importante é que apesar da obra ter sido escrito em uma Islândia cristã (pois foi a chegada destes que levou a escrita de fato àquela civilização) e inclusive fazer a afirmativa explicita (na voz de Njáll) de que esta nova religião seria algo bom, ao mesmo tempo a obra coloca elementos onde vemos certa podridão da nova religião.
- - Vemos o uso de artificios enganadores sendo utilizados para convencer as pessoas de que a nova religião é verdadeira e a velha religião falsa. Como a aposta da fogueira.
- - Vemos o uso da força para convencer, de modo que muitas vezes era "conversão ou morte" para muitas pessoas.
- - Vemos a falta de honra dos seguidores da nova religião quando a impõem por força de lei na assembleia, ao invés de procurar uma escolha mais justa.
- - E, se quisermos forçar um pouco, vamos notar que antes da chegada da nova religião a honra e a busca por conciliação eram elementos mais latentes e presentes. Depois da chegada do cristianismo isso parece mudar, e a deshonra e a busca por vingança se tornam mais presentes nas relações.
Agora voltemos às intrigas...
1 - A profecia a respeito de Hallgerdr, filha de Höskuldr, proferida por seu tio na página 84.
É bastante bela essa menina, e muitos ainda hão de pagar por ela; mas isto eu não sei: de onde surgiram olhos de ladra em nossa família
.
A jovem Hallgerdr é herdeira sanguínea de Ragnar Lodbrok e seu gênio forte realmente causa problemas. Primeiro, vemos várias dívidas de sangue ("muitos hão de pagar por ela") e depois temos um pesado conflito que tem como origem suas ações ("de onde surgiram olhos de ladra").
Seguem spoilers sobre este tópico. [SPOILERS A PARTIR DAQUI]
- Hallgerdr casa com Thorvaldr filho de Osvifr, morto por Thjóstólfr e compensado com 200 onças de prata
- Hallgerdr casa com Glúmr filho de Óleifr que é morto (também) por Thjóstólfr (desta vez morto por Hrútr) e é compensado com presentes. Com ele nasce Thorgerdr que se casará com Thráinn, tio de Gunnar.
- Hallgerdr casa com Gunnar Hámundarson de Hlídarendi e com ele tem vários filhos. Dentro deste casamento surgem duas grandes intrigar prepertradas por Hallgerdr.
- Primeira intriga: contra a família de Njáll. Começa com Svatr cortando lenha em Raudaskridur (uma floresta compartilhada por Njáll e Gunnar), isto desagrada Hallgerdr.
- - Kolr mata Svatr, compensado com 12 onças de prata
- - Atli mata Kolr, mesmas 12 onças
- - Brynjólfr mata Atli, 100 onças de prata
- - Thórdr mata Brynjólfr, mesmas 100 onças
- - Sigmundr mata Thórdr, 200 onças de prata. Porém Thórdr era pai de criação dos filhos de Njáll.
- - Skarphedin Njállson mata Sigmundr, Grímr e Helgi matam Skjöldr. E se "encerra" a primeira grande intriga.
- Segunda intriga: contra Otkell. Começa com Otkell, seguindo o conselho do mentiroso Skammkell, recusando auxiliar Gunnar em momento de necessidade. Isto irrita Hallgerdr e ela faz Mellkolfr (antigo criado de Otkell) roubar do antigo mestre mantimentos e levar para ela. As tentativas de conciliação não deram certo e o os problemas entre Gunnar e a gente da região de Otkell simplesmente vão escalando cada vez mais. Culminando com o exílio da família e a morte de Gunnar. Esta grande intriga é também o que coloca Gizurr, o branco, Geirr Godi e Mördr Valgardsson na obra. Os três como inimigos de Gunnar neste primeiro momento e futuramente como aliados do povo de Njáll.
- Os ressentimentos entre a gente de Gunnar e a gente de Njáll são depois reacendidos, de certo modo sendo presentes nos eventos que levarão à morte de Hölkuldr Thrainsson/Hvitanessgodi e depois ao incêndio de Njáll.
[FIM DOS SPOILERS]
2 - Um segundo ponto que parece dar uma flexionada na obra é a presença de um pequeno personagem: Hrappr o matador. A introdução dele na obra leva a um desentendimento entre os filhos de Njáll e Thráinn Sigfússon (página 214). Que depois alimenta o problema entre os filhos de Njáll e Höskuldr Thrainsson/Hvitanessgodi e sua gente (aqui surge Flosi Thrórdarson, irmão do sogro de Hölkuldr Hvitanessgodi).
Todas as intrigas na obra, as pequenas e as grandes, parecem interligadas em um mesmo fio condutor. Ocorrendo apenas algumns eventos que conseguem interromper por um momento a escalada de conflitos ou que realizam um desvio de modo a atingir outras pessoas.
Por fim, uma pequena crítica ao livro/tradução: senti falta de uma genealogia ao fim. Mesmo que não para todos os personagens, ao menos para os mais importantes. E, junto com isso, seriam muito bom ter organizado a página em que cara personagem primeiro aparece na obra. Por exemplo, me perdi um pouco com Thorgeirr Skorargeirr, que vejo aparecer na pagina 293. Mas será que ele já tinha sido citado antes?