Psychobooks 07/02/2015
John Grisham é um autor hábil que sabe conduzir o leitor em sua narrativa. Minhas expectativas estavam superaltas para "A Herança", a ponto de não me atentar ao fato de o livro ser continuação de "Tempo de matar" (que não li, só vi o filme, há muitos anos). Mas isso não foi um empecilho para a deliciosidade da leitura.
É about o quê, Alba?
"A Herança" conta a história de Jake Brigance, um advogado de uma pequena cidade de Ford County, Mississipi. 3 anos após ganhar um julgamento que teve grande atenção da mídia, ele está quebrado financeiramente, e atende apenas casos de "porta de cadeia", simples e que não lhe dão muito dinheiro. Tudo muda quando Seth Hubbard, um homem de 71 anos, se suicida e envia a ele um testamento de próprio punho anulando o anterior, assinado um ano antes. Nesse testamento Seth deixa 90% de seu dinheiro para sua empregada doméstica, Lettie Lang, e deixa claro que não quer que seus filhos levem nada.
John Grisham nos levará então por 560 páginas de um julgamento onde qualquer fato pode mudar drasticamente a fluência das coisas. E com o racismo do sul dos Estados Unidos como plano de fundo, aliás, assunto superabordodo - e muito bem abordado - por Grisham em seus livros.
Narrativa e sua fluência
Grisham escreve em terceira pessoa onipresente. Aquela onde o narrador está em todas as mentes e sabe de tudo, dando, inclusive, minispoilers do que vai acontecer no decorrer do texto (mais conhecidos como "e tudo desmoronaria dali a segundos").
Como citei acima, o livro é continuação de "Tempo de matar", mas na verdade um spin-off usando os mesmos personagens e cenários, ou seja, os acontecimentos do primeiro livro da série não têm grande influência nesse segundo. Há algumas idiossincrasias de alguns personagens que acabam se perdendo por conta disso (Lucien, um advogado que perdeu a licença é um bom exemplo); o leitor fica um pouco perdido de início, mas Grisham não deixa de nos situar em momento algum. Há um estranheza inicial, mas depois o leitor fica a par de tudo e o texto corre sem problemas.
Época e o racismo do sul dos Estados Unidos
Grisham aborda muito em seus livros as questões raciais, principalmente voltando no tempo e fazendo com que o leitor tenha uma boa visão do que era viver nos anos 30/40 e 50 no estado do Mississipi.
Em "A Herança", o julgamento acontece em 1988/ 89, mas Grisham deixa claro que a cabeça que regia os homens dos anos 30 a 60, continua praticamente a mesma à beira dos anos 2000 e que a divisão de negros e brancos em pequenas cidades ainda era latente, mesmo tantos anos após o fim da segregação.
É importante para o leitor ter conhecimento da história americana para ter em mente todos os fatos e conseguir pesar cada dica que Grisham dá ao longo do texto, principalmente na questão do peso da cor de Lettie Lang no julgamento de um testamento no valor de 24 milhões de dólares.
Não é apenas questão da vontade de Seth. O que está em jogo é uma negra sem instrução ter a posse da maior fortuna do condado, e isso, para um juri (e uma cidade) do sul dos Estados Unidos é algo inconcebível. É contra isso que Jake tem que lutar.
O que buscar numa leitura de Grisham
Grisham é hábil em sua escrita. Ele conduz um julgamento por 560 páginas, conseguindo dar todas as informações de forma clara e envolver o leitor a ponto de o deixar curioso para virar as páginas do livro, ávido por saber mais da história de Lettie com Seth e entender o que moveu o homem a mudar seu testamento à beira da morte.
É hábil também ao deixar o leitor afoito com alguma informação crucial que o lado da defesa tem e que Jake não sabe e que acabará caindo sobre ele como uma bomba durante o julgamento. Gritei inúmeras vezes com Jake - e com Lettie - e tive que deixar o livro de lado outras tantas vezes para assimilar informações e entender e ponderar como Jake conseguiria se livrar dos problemas.
Grisham tem uma habilidade absurda em informar o leitor sobre dados técnicos sem que ele sinta que está recebendo uma aula. Muitas vezes ele entra na cabeça de advogados, testemunhas, xerifes, jurados, juízes... Apenas para mostrar alguma informação e com ela dar a visão ampla de tudo. É comum sair da visão de Jake em uma cena para logo mais estar na cabeça de outro personagem, analisando o mesmo fato e vendo apenas as reações externas do protagonista. É superinteressante saber o que Jake pensa e o que ele quer passar com sua postura e mais à frente poder ver como isso é recebido por outro personagem.
Os personagens e o plano de fundo
É uma série que claramente será retomada com outras spin-offs. Os personagens são fortes e têm muita história ainda para contar. Jake, aos 35 anos, ainda está crescendo como advogado: é uma promessa que está se concretizando, mas ainda tem muito a mostrar; e isso é um prato cheio para o leitor.
Personagens de "Tempo de Matar" retornaram a esse livro, um em especial senti que veio apenas para que o leitor se vingasse mais um pouco de suas ações no primeiro livro. Outros, como o xerife Ozzie, retornou para fundamentar mais sua base e crescer mais ainda na trama.
Carla e Hanna, mulher e filha de Jake, respectivamente, também ganham espaço, mas apenas como apoio do protagonista. Acredito que Carla teve mais envolvimento em "Tempo de matar" (pelo que entendi da conversa dos personagens durante a trama de "A Herança"). Nesse a achei apagada, mas crucial em um determinado momento.
A cidade é em si um personagem forte e muito bem caracterizada. Todos seus habitantes são caricatas e o que se espera de uma cidade pequena e ligada às raízes; raízes que nem sempre são as mais adequadas e corretas, diga-se de passagem.
Vale a pena, Alba?
É preciso saber o enredo que espera e como o autor desdobrará os acontecimentos. É um livro para apaixonados por direito e por suas amardilhas. Muitos termos técnicos são apresentados, mas sempre tendo em mente a fluência da escrita e inúmeros cliffhangers para manter o leitor preso ao texto.
É um livro para quem curte histórias de julgamentos. Ponto. Não espere romances, não espere acontecimentos que saiam da esfera de um tribunal de justiça. É uma história onde o palco é o tribunal do juri e todo o enredo se desdobra tendo como clímax o resultado do processo.
Eu adoro. E super-recomendo.
"(...) - Seth tinha muito dinheiro e ganhou tudo nos últimos dez anos. Depois de seu segundo divórcio, ele ficou amargo, revoltado com o mundo, falido, e também determinado a ganhar algum dinheiro. Ele realmente gostava da segunda esposa e depois que ela o dispençou, ele quis vingança. Para Seth, vingança significava ganhar mais dinheiro do que ela levou no divórcio."
Página 88
site: http://www.psychobooks.com.br/2015/01/resenha-sorteio-a-heranca.html