Lili 18/04/2024
Assustadoramente previu a pandemia, apesar de não ser um vírus, mas algo ambiental
Publicado originalmente em 2020 e, no Brasil, pela Moinhos no ano passado com tradução de Ellen Maria Vasconcellos e título “Gosma Rosa” (Mugre Rosa), romance de Fernanda Trías acumula traduções ao redor do mundo, foi selecionado entre os dez melhores livros em língua espanhola no ano de 2020 pelo The New York Times e vencedor dos prêmios: prêmio residência SEGIB-Eñe-Casa de Velázquez (Espanha, 2018), o Prêmio Nacional de Literatura (Uruguai, 2020), o Bartolomé Hidalgo (Uruguai, 2021) e o Sor Juana Inés de la Cruz 2021 da FIL de Guadalajara.
O título faz referência ao Pink Slime — um subproduto da indústria de alimentos de carnes, ultraprocessado, usado amplamente como aditivo alimentar para carne moída e carnes processadas à base de carne bovina — mas que no livro é a fonte proteína dos habitantes de uma cidade litorânea não nomeada que tem seu cotidiano afetado por uma misteriosa, e muitas vezes letal, contaminação derivada de um fenômeno atmosférico relacionado a degradação ambiental, o chamado vento vermelho.
A narrativa, no entanto, não visa desvendar as razões para o fenômeno, tampouco caminhar até uma solução, como outras tantas obras do gênero, a autora opta por situar sua protagonista no instante em coisas não estão tão claras, mostrar como as pessoas reagem as informações e falta de informações, enquanto a vida segue: um ex-marido que se contaminou propositalmente, uma mãe com a qual tem uma relação desgastada, uma criança que foi paga para cuidar.
A escrita de Fernanda Trías é dominada pelo cinza e pela claustrofobia mesmo nos raros momentos fora de casa, a névoa, a umidade alta e eterna sufoca e seu jogo com Mauro, a criança, de procurar o sol da sua janela de apartamento com tantas nuvens é simbólico, talvez, de uma desesperança e nostalgia de quem viveu verões memoráveis na mesma terra anos atrás e que é revisitado constantemente na cabeça. Nessa sensação de estrangeira no próprio lugar, que a autora relaciona a sua própria volta a Montevidéu, a única maneira de retornar para casa é a memória, no entanto, as pessoas se apegam ao lugar, continuam na cidade, apesar de tudo, do risco, na esperança de um dia, eu acho, ter de volta esse lugar perdido.
Os eventuais pontos de cor são relacionados a coisas que geram algum incômodo, dano, sofrimento: as cores da algas, as nuvens que sinalizam o sopro da morte, Mauro, a criança, um ponto vermelho no meio da névoa na primeira vez que saíram de casa juntos, o néon com letras faltantes de um hotel, paisagem que abre o livro e que praticamente descreve de cara toda a atmosfera do que virá e tem sido uma atmosfera comum em algo que tem se chamado de horror latino: as sombras, o mofo, a ferrugem, o podre, a névoa. O horror latino me parece ser marcado por páginas molhadas e sufocamento.
É simbólico também, que no meio de tanta falta, não apenas de recursos, mas de afetos, a autora trazer um personagem como Mauro com uma síndrome raríssima (síndrome de Prader-Willi) que em função de um desajuste hormonal faz com quem tenha uma fome tão constantemente presente quanto a névoa que os cerca e que por isso é rejeitado pela família e tem seus cuidados repassados para a única pessoa que conseguiu estar com ele por tanto tempo, e talvez, a única que enxergue humanidade nele, ainda que isso não seja algo presente o tempo todo.
Enquanto cuida dele, a protagonista vai e vem entre presente e passado, revisitando inícios e finais de relacionamentos, de vidas presa nas ausências, fragilidades. A mãe sempre distante na infância e adolescência, o marido que se separou mas que não conseguia deixar de visitar no hospital, esse menino rejeitado apenas por ser quem ele é. Como distopia, o livro antecipa de fato inúmeros pontos de uma pandemia que viria poucos meses depois, e funciona de fato como um grande alerta sobre a crise ambiental, mas que apenas adorna, como disse no subtítulo, o que estava presente ali o tempo inteiro: a falta.
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