Lurdes 24/12/2023
Ler Humanos Exemplares mexeu muito comigo.
A protagonista Natalia já chegou aos 100 anos e vive sozinha, cada vez mais sozinha, conforme os parentes e amigos vão morrendo.
Seu marido e grande companheiro Vicente já se foi.
A única filha mora em outro continente, com sua companheira, há muitos anos.
A melhor amiga Sarah também já se foi e, neste contexto, o que mais ela deseja é que alguém bata à sua porta pra fazer uma visitinha.
Natália é absolutamente encantadora. Ela era professora de redação, considerada até um pouquinho fofoqueira por adorar contar estórias de conhecidos para os alunos, para ilustrar formas de narrativas além de preparar paneladas de macarrão com molho para confraternizar com alunos e com os colegas professores.
Vicente era professor de Geografia e, também, bastante criativo. Costumava redesenhar o mapa mundi, junto com os alunos, eliminando fronteiras políticas e culturais, levando em conta apenas aspectos geográficos.
Um novo mundo utópico, livre de disputas territoriais, guerras e preconceitos. Este seu comportamento anárquico fez com que ele fosse duramente perseguido durante a ditadura militar, onde muitos de seus amigos foram presos, desapareceram ou foram mortos. Por meses Vicente fica escondido na casa de amigos para não ser preso.
Natália também precisa ficar reclusa nesta época e o paralelo com a reclusão atual pontua a narrativa.
O livro foi escrito no período da pandemia e, embora ela não seja citada explicitamente, fica claro que Natália não pode sair de casa por conta da ameaça externa.
Mas não pensem que o livro é sobre dores, doenças e morte.
É sobre vida, sobre afetos, sobre lembranças.
O afeto marcou a vida de Natália, e os "queridos", como ela chama os amigos, colegas e familiares, eram Exemplares Humanos de primeira categoria e ela sonha que no futuro tenhamos mais Humanos Exemplares, em um mundo mais harmonioso e justo.
Algumas passagens são pura poesia como o período que antecede e culmina com a morte de Vicente. Eles até tentam se preparar para o momento, quando sentem que a morte é iminente, e fazem isto juntos, com uma leveza inesperada. Outras passagens mesclam aflição e muito humor, como a da cuidadora que tenta controlar sua vida, mas não resiste às artimanhas de Natália, incluindo suas estripulias com um vibrador. Sim. Velhos sentem desejo e prazer. Um livro lindo, que nos toca profundamente e que não cansarei de recomendar.