jota 15/01/2023ÓTIMO: cáustico e hilariante monólogo com pitadas de Roth e Bernhard, que ainda mistura personagens tão distintos como Hitler, Jesus, Bambi, Frankenstein etc. Lido entre 11 e 13 de janeiro de 2023.
Na sinopse do livro de Katharina Volckmer, a editora brasileira de A Consulta, a Fósforo, diz que o volume é assim uma espécie de O Complexo de Portnoy às avessas. Alguns críticos estrangeiros veem no monólogo torrencial da escritora alemã radicada em Londres uma prosa ácida que também lembra a escrita do austríaco Thomas Bernhard. Para quem aprecia Philip Roth assim como o autor de Extinção, meu caso, o livro de Volckmer é uma festa. Da qual só participei quando descobri na internet que Carlos Willian Leite, da Bula, havia incluído A Consulta entre suas melhores leituras do ano passado. Para mim, seguramente, essa será uma das melhores leituras de 2023; iniciei o ano literário muito bem, portanto.
Tal como está na sinopse, temos Sarah, uma jovem alemã de cerca de trinta anos, no consultório de um ginecologista judeu de Londres, metido entre suas pernas, que tudo ouve e nada diz, o doutor Seligman. Que ao mesmo tempo também poderia ser um cirurgião plástico a realizar um procedimento nas suas partes íntimas ou até mesmo um psiquiatra a ouvir incessantemente as confissões freudianas da paciente, uma mulher que gostaria de ser homem. Razão pela qual a Fósforo escreveu que o livro de Volckmer “retoma a melhor tradição do romance neurótico, ela nos conduz por uma jornada verborrágica que vai de mães controladoras e fantasias sexuais com Hitler até as propriedades medicinais da cauda do esquilo, passando pela inusitada ideia de que as mudanças anatômicas podem servir de reparação histórica.” Isso não é pouco, convenhamos, faz a festa do leitor se tornar um festival.
Evidentemente que ao chegar até sua tradução brasileira o livro já vinha do exterior carregado por uma série de resenhas entusiasmadas, como a do New York Times Review: “Um furioso monólogo cômico... com um desrespeito pelo decoro digno de Alexander Portnoy.” Ou ainda do Guardian: “Um desenredamento sombriamente engraçado da identidade nacional e sexual.”; da New Yorker: “Transgressivo... Incendiário.” E da Paris Review: “Sexy, hilário e subversivo.”, só para ficar com apenas algumas das mais expressivas. Não se trata de bajulação para vender livros ou ficar bem com a escritora estreante; de fato o monólogo de Volckmer tem todas essas qualidades mesmo. Ela trata de assuntos sérios, como a culpa alemã pelo Holocausto, por exemplo, com humor, ironia e mordacidade. E sobretudo com honestidade, como sua autora.
Numa entrevista a um periódico italiano Volckmer confessa que seu sentimento de culpa em relação aos judeus ainda é muito forte: “Quando vou a um jantar e me apresentam a alguém e só depois me dizem que é judeu, me sinto extremamente incomodada. Gostaria de pedir desculpas, de fazer alguma coisa, mas seria tudo inapropriado. Então permaneço calada.” Ao contrário de sua personagem, que fala pelos cotovelos e assim prende a atenção do leitor ininterruptamente. De volta a CWL, da Bula, que escreve muito melhor do que eu, claro, e soube resumir bem o conteúdo de A Consulta:
“Divertido, engraçado, chocante, mas também severo, sério e dolorido, o livro é, sobretudo, o diário de uma guerra interior, contra algo que habita os mais profundos recônditos da mente, uma guerra travada com a própria identidade sexual — mas com alguma esperança de que uma mudança anatômica seja capaz de reparar a história.” É isso.