andrensf31 16/07/2023
A relação com a terra: antropofagia na barriga da jovem.
Terra. Terrenos que produzem sentimentos e sensações que podemos percebê-las ou não, dependendo da forma como tratamos aquele ambiente. No livro de Dolores, a relação com esse plano é parte fundamental da narrativa, a jovem garota que come terra e consegue sentir pessoas que já morreram ou que ainda sobrevivem, faz uso desse elemento como se fosse um poder. O sentimentalismo dessa relação pega o leitor de surpresa, no começo causa um estranhamento e nojo, como se fossemos parte daquela história e tivéssemos o mesmo olhar que a sua tia.
A terra denuncia o feminicídio que ocorre no mundo, exposto no começo do livro, com a epígrafe ?À memória de Melina Romero e Araceli Ramos. Às vítimas de feminicídio, às suas sobreviventes.?, mostrando que Dolores trabalhará com assuntos complicados e importantes, usando a ótica da menina para narrar a história. O medo eminente e a forma de detetive que ela adquire com a sua relação com a terra denotam e pintam esse quadro triste dos subúrbios argentinos. A pobreza que nos é apresentada aqui, os comentários feitos pelos vizinhos, a tia que só está ali porque seu pai fugiu e a relação com seu irmão Walter é a forma mais humana e dolorosa que nos faz ter uma empatia e coração pela personagem e toda essa árdua bagagem que carrega, ou melhor, que nós carregamos ao longo de sua jornada.
Lembrou-me alguns livros, como o próprio ?O Avesso da Pele?, de Jeferson Tenório, em que o personagem se vê mais como um observador do que como um personagem principal, um protagonista de sua vida. Assim, passa a reparar mais nas ações dos outros, como aqui acontece entre a menina e o Walter, não tendo tanto poder sobre as suas próprias narrativas. ?Para que? Se no final resta apenas a terra remexida.?(p. )
A dor dessa criança nos faz perceber a necessidade que ela possui de comer aquela terra que traz consigo lembranças e também abre nossos olhos para a forma que possuímos de contar histórias e viver memórias. Como em ?Torto Arado?, romance de Itamar Vieira, a ambientação que temos no livro é parte central do texto, dialogando sempre com a menina rebelde que vive com seu irmão e é atormentada por seus vizinhos enxeridos.
O retrato que aqui é mostrado pela autora me fez lembrar e querer comentar da semelhança com o subúrbio brasileiro. Vizinhos fofoqueiros, amigos que se reúnem para partidas de videogame, sempre rodeados de cervejas e conversas que, mesmo em um ambiente que no dia-a-dia refletem o desespero por conta da falta de dinheiro e pela violência, ainda assim, resplandecem algum certo tipo de alegria em meio ao caos.
A antropofagia existente aqui, faz a menina reter memórias de tudo e todos que pisam na terra. Habilidades divinas que personificam esse elemento e trazem uma nova perspectiva para a vida dela. Se no começo do livro, ela era vista como uma maluca por comer terra, ganhando até o apelido de ?cometerra?, tudo começa a mudar quando sua professora some e ela, para descobrir onde estava, sente a ânsia e a vontade gigantesca de comer a terra onde Ana costumava ficar quando olhava os meninos jogando bola. A forma como a narradora trata seu contato com a terra é algo que me chama atenção. O fato dela se irritar por ter que usar jaleco branco que sujava bastante ou o contato de seus pés que sempre quando tinham a oportunidade, se fincavam na grama de seu quintal para sentir o úmido da terra, nos contam sobre esse vínculo que ela possuía com a natureza. Às vezes, não era bom para ela, a terra, que antes tinha um gosto bom, passa a ser horrível, pois ela lidava com outros tipos de solo que mostravam algo que ela não queria ver.
O misticismo presente no livro e transformado pela cidade com a ida para a casa da mãe Sandra é apresentado sempre de forma distante. Por mais que saibamos que a garota possui um certo tipo de poder especial, é somente quando ela se encontra com Sandra que ele é, finalmente, falado e explicitado. Mesmo depois, permanece apenas como um aviso em meio aos seus sonhos.
A violência daquele bairro assemelha-se à de bairros do Rio de Janeiro que contam suas histórias através de fragmentos violentos como a ?Chacina da Candelária?, os confrontos entre facções e suas guerras por território. Saber que esse livro se trata de um grande apanhado violento que é norteado pela menina nos faz ter uma sensação de amizade com ela, um vínculo, como ela tem com a terra, que a faz ver tudo de ruim que acontece com as pessoas que ela quer (ou não) salvar. O seu crescimento também a faz se afastar dos vínculos antigos, como o com o seu irmão, que em certa parte, faz-se cada vez mais distante de sua irmã, seja pela rotina cansativa que ele possui, com a responsabilidade de cuidar da casa, ou o confinamento em seu quarto causado pela moça do coturno preto. Esse afastamento e aproximação que ela possui com as pessoas é muito causado pela violência que ela recebe da terra, que fala com ela por essa linguagem. Igual o causado por um sumiço, que a faz se aproximar amorosamente de alguém.
Os sentimentos conflitantes que ela possui com os ambientes o fazem ter medo, sentir o local a expulsar. O clima daquele lugar tentava avisar a ela para fugir, o foco dela na viagem, quase como um subterfúgio para o perigo era seu romance, que agora estabelecia um contato mais próximo e protetor com a menina que a pouco tempo conhecia.
O que pode nos contar a terra? As lembranças e suas memórias e o que ela carrega consigo? As vítimas da brutalidade do humano, o feminicídio causado por grupos extremistas e as mortes de negros que são fatalmente transcritas aqui e que perpassam até pela polícia, que fatalmente é fator crucial para a morte de negros e próprio preconceito, sendo negligente e não protegendo os moradores daquele local.
Os relatos que ela recorda de sua infância a fazem pensar naquele grupo de carecas que era movido pelo ódio e raiva de pessoas que eram diferentes deles. A forma como Dolores retrata a brutalidade e o sentimento de vingança também fazem a leitura valer a pena, o texto é uma mistura que deixa a cidade como um dos personagens principais, mostrando-a como quebrada e totalmente entregue a violência. Refletindo nos personagens a crueldade que é imposta pelos mecanismos opressivos.
O excelente livro nos traz uma sensação de angústia toda vez que a garota abre a boca para comer terra, seja por vontade própria ou seja para descobrir algo que lhe dará dinheiro. Sempre temos a sensação dela querer fugir daquele poder que a terra concebeu a ela, a ?cometerra? recebe o título irritante e os olhares que no decorrer da trama se escancaram em hipocrisias. Interessante vermos a construção dessa personagem principal, que passa por diversos episódios chocantes e, com isso, adquire maturidade para conseguir lidar com as dores e os sentimentos ruins que se retira disso, tendo ainda mais contato com a terra e entendendo seu papel naquele meio caótico.